Algo
interessante a se notar no meio evangélico é a sua dificuldade na forma de lidar
com aquilo que é diferente de suas concepções de mundo. Do ponto
de vista da própria formação do discurso evangélico esse tipo de
dificuldade é muito facilmente compreendido dado a sua "tara"
com a noção de certeza.
Em
diversas vezes lemos ou ouvimos alguém dizer algo nesse meio que
remete a uma posição segura e infalível de sua crença, das suas
concepções de mundo, etc. Esse tipo de relação vai se mostrando
pior à medida que o outro discurso vai se afastando de suas
concepções.
Um lugar
onde tal discurso se mostra de forma extremamente estranha é na
relação estabelecida entre as igrejas evangélicas e as religiões
de matriz africana ou também chamadas de religiões afrobrasileiras. Para além de toda discriminação envolvendo as
pessoas negras e suas culturas, que no caso brasileiro diversas vezes
é associado a algo ruim, (o que é muito sintomático dada a
presença maciça da população africana na constituição do povo
brasileiro) há ainda a questão ontológica/metafísica envolvida
que para algumas pessoas torna qualquer tipo de diálogo impossível.
Em via de
regra, para o evangélico comum, a relação é muito simples e pode
ser resumida a formulação de que "tudo associado a
religiões de matriz africana pode ser demonizado e deve ser
evitado a qualquer custo." Não há nenhuma possibilidade de
diálogo entre os dois ramos religiosos. Tudo associado a Orixás,
Nkises, Voduns deve ser evitado sob a constante ameaça disso "abrir
portas" para o mal sobrevir à pessoa ou à sua família. Em
diversas igrejas há os chamados "cultos de libertação"
em que se visa "expulsar os demônios" e em vários casos
os nomes dados a esses demônios são nomes retirados da própria
tradição de religiões africanas. Nomes como "tranca-ruas",
"pomba-gíria", "preto velho" são transformados
em demônios que precisam ser expulsos da vida do sujeito pelo fato
de serem eles que estariam causando todo o mal. A relação se dá de
forma muito direta e isso é um fator interessante de se notar da
discriminação envolvida em relação às religiões de matriz
africana.
É necessário aqui ressaltar a diferença que fazemos entre protestantes e evangélicos que já falamos em diversos outros textos. No meio protestante a postura dialogal se mostra um pouco melhor que no meio evangélico (embora várias vezes meio "truncado") e há diversos movimentos de trabalhos conjuntos entre o protestantismo e as religiões de matriz africana. Eu mesmo já participei de alguns encontros em que líderes de religiões afrobrasileiras se encontravam presentes e o clima dialogal se fez presente de maneira muito cordial e respeitoso. No entanto, tal prática ainda não se mostra a tônica nem mesmo entre os chamados protestantes. Um movimento interessante do diálogo entre as igrejas protestantes e as religiões de matriz africana, caso alguém tenha algum interesse, é a Fundação Luterana de Diaconia (de onde sai a imagem que ilustra esse texto)
Algo
importante a se ressaltar é que as Religiões afrobrasileiras
celebram a natureza e respeitam a diversidade e são ícones de uma
cultura ancestral. É preciso salientar, por exemplo, que a figura do
diabo não existe nas religiões afro-brasileiras e a associação
dele ao candomblé e Umbanda pode ser entendida como uma estratégia
de um discurso de dominação bem implantado por parte dos
opressores. Ou seja, a hierarquia ontológica se mostra devedora das
relações de poder do mundo material.
O candomblé é
uma religião que cultua divindades da natureza, que são os
Orixás, Nkises, Voduns, nome que varia de acordo com a nação
que a casa pertence, se Kêtu, Angola, ou Jêje respectivamente. No
candomblé, o canto, a dança são muito presentes nos cultos e são
elementos importantes na atração da energia espiritual que se
cultua. Ele pode ser entendido também como uma prática
religiosa ligada aos costumes das tribos antigas africanas, na medida
em que tudo o que se faz é muito ligado à uma tradição e que se
propaga ,sobretudo através da oralidade. As formas de culto e as
nomenclaturas são bem particulares seguindo sempre sua nação
e raiz de origem. Isso justifica as diversas formas desse culto no
Brasil, cujo formato é organizado em xirês ,que são as
ordens em que são apresentados os Nkisses, Orixás ou Voduns nos
cânticos de um toque para essas divindades.
As nações
do candomblé são, por assim dizer, o “lugar” dessa organização
de ritos, nomenclatura, fundamentos, cantos, história das divindades
e articulações simbólicas referentes a elas. Embora possua, na sua
essência a reverência a várias divindades ligadas à natureza, o
candomblé é uma religião monoteísta, ou seja, que cultua um
único Deus – Nzambi (Nação Angola) - Olorum (Nação Ketu)
dentre outras possíveis nomenclaturas. Nesse contexto, as
divindades, são entendidas em alguns casos como espíritos que
auxiliam a Deus no governo do mundo, uma espécie de força da
criação divina. Entendendo a ideia do culto a essas divindades como
ela é realizada, é possível dizer então, que o candomblé
cultua ritualisticamente a energia da natureza em suas múltiplas
manifestações, das nuances mais belas à intensa devastação a que
nos submetem.
A Umbanda é a única religião
genuinamente brasileira, surge aqui e é fruto da miscigenação e da
mescla de cultura e tradições que nos caracterizam. Tem os orixás
como guia máximo entre as divindades assim como o candomblé, mas os
louva em Português, enquanto candomblé cultua usando cânticos
em yorubá (Ketu) ou Bantu (Angola). Os umbandistas tem seus
fundamentos fruto da rica mescla entre candomblé e os valores do
cristianismo. Pode-se dizer que a premissa básica desta religião é
a caridade e tem os ensinamentos de Cristo como referenciais
importantes de conduta na terra. Importante ressaltar que tais religiões não têm a Bíblia como um livro sagrado, mas partem principalmente da oralidade para compor a sua ontologia. Dessa forma afirmar que tais religiões estão "contra a verdade bíblica" incorre ao mesmo tempo em um grande desconhecimento do que poderia ser chamado "verdade bíblica" e ao mesmo tempo um desconhecimento em relação ao funcionamento das religiões em questão.
Podemos perceber que as religiões de matriz africana, como toda religião, buscam o contato com a esfera do sagrado e para isso se organizam de uma determinada forma dado o seu contexto cultural. Nesse sentido podemos dizer que do ponto de vista do objetivo das religiões afrobrasileiras o que está em jogo é o mesmo objetivo do cristianismo, ou seja, o contato com aquilo que consideramos sagrado. Há obviamente uma diferença ontológica (do que é considerado existente) nas formulações cristãs e nas formulações de outras religiões. A ontologia cristã não aceita essa personificação da natureza proposta por algumas religiões afrobrasileiras, não aceita a existência dos chamados "orixás" e outras coisas, assim como as religiões afro não aceitam a existência do "diabo", "demônios" com essa nomenclatura, coisa que para o evangélico comum é tido como de "indubitável existência". A diferença ontológica/metafísica, no entanto, não deve ser motivo para a demonização das religiões afrobrasileiras. O fato destas religiões não compactuarem com aquilo que consideramos existentes não as tornam algo a ser combatido, não as tornam algo a ser "evitado", mas muito pelo contrário, algo a ser conhecido e respeitado por qualquer pessoa ou religião.
Obviamente que a questão a que se propõe este texto não é o de "igualar" todas a religiões afirmando que todas elas servem ao mesmo Deus, etc, o que seria um desrespeito às especificidades de cada formação religiosa, uma afronta à própria concepção de Deus evidenciada em cada religião. Mas o que se pretende antes de tudo é mostrar que a demonização feita por grande parte das igrejas evangélicas em relação às religiões de matriz africana tem mais a ver com uma discriminação de cunho social e ideológico do que com uma questão ontológica/metafísica. Claramente que a primeira é condicionante da segunda na nossa opinião, mas há sempre aqueles que pensam que a segunda é a causa da primeira, e esse tipo de pensamento é o que leva a diversos fundamentalismos de ambos os lados, embora a presença do fundamentalismo pelo lado evangélico se sobressaia, dada à nossa própria configuração social.
Tem havido um grande avivamento das religiões afrobrasileiras e cada vez mais pessoas tem-se assumido praticantes destas religiões rompendo estigmas e tendo que lidar diariamente com a discriminação advinda dessa tomada de postura. Em diversos momentos se assumir pertencente a uma religião de matriz africana se mostra como um grande protesto e ao mesmo tempo um afirmar de uma identificação com outra forma religiosa que não as cristãs ocidentais. Por incrível que pareça, mesmo as religiões orientais (budismo, taoísmo, etc.) possuindo uma ontologia mais afastada da ontologia clássica cristã, elas são mais aceitas no ocidente, o que a meu ver aponta para a discriminação social/ideológica das religiões de matriz africana que leva à discriminação e à demonização das mesmas por parte de diversas denominações evangélicas.
O
candomblé, a Umbanda e diversas religiões afrobrasileiras são ricas em cultura, função social e são
também pilares que constituem nossa sociedade há muito tempo e
precisam ser respeitados como quaisquer outras práticas religiosas.
Esse texto só foi possível dada a contribuição substancial do caríssimo Washigton Luís, irmão do Candomblé que contribuiu na elaboração deste texto principalmente na parte das características das religiões afrobrasileiras.
Washington
Luís Santos oliveira é candomblecista , formado em Comunicação
Social / Jornalista atuou como repórter e apresentador nas
Rádios Alvorada e Band News FM. Membro do Conselho executivo do
Instituto Bambare de valorização da cultura Afro-Brasileira e
membro da Rede Ecumênica de Juventude REJU.
Fabiano Veliq é Filósofo graduado em Filosofia pela UFMG. Mestrado em Filosofia da Religião pela FAJE. Especialista em Teologia Sistemática pela Faculdade Batista de Belo Horizonte. Doutor em Psicologia pela PUC Minas. Possui pós-doutorado em Psicanálise pela PUC Minas.