Se pensarmos bem, o conceito de tolerância é um conceito extremamente vago e geralmente utilizado com um viés ideológico extremamente problemático. Se observarmos, por exemplo, o discurso de Martin Luther King, (quem quiser pode baixar o discurso e ler online) em hora nenhuma ele menciona que deveria haver tolerância quanto ao racismo. Em hora nenhuma ele propõe um "diálogo" para resolver os problemas, pois ele sabia que em determinadas situações o diálogo não é mais possível. Ele sabia que o discurso da "tolerância" conduz não raras vezes exatamente ao oposto do que ele se propõe. É por isso que precisamos sempre deixar claro a nossa posição, é preciso ser firme contra os discursos de ódio, contra os discursos que ferem a dignidade do sujeito, quer ele seja um discurso religioso, moral, institucional, etc. Não podemos jamais permitir que esses discursos encontrem eco entre nós. Para isso não há diálogo, pois a mínima abertura para isso pode abrir as portas para o que há de pior entre nós.
É exatamente neste sentido que qualquer discurso de ódio que vem seguido da fala "foi brincadeira", ou "não quis dizer isso" deve ser imediatamente interditado. Não deve haver espaço entre nós para que tais discursos de ódio sejam minimizados, pois sob a fala do "humor" da "brincadeira" se revela uma face cruel do sujeito.
É sabido de todos nós que ninguém nasce odiando ninguém, ninguém nasce com preconceito com ninguém, mas isso é sempre ensinado por uma cultura que tem determinados valores. Valores estes que nunca são "eternos", mas sempre criados socialmente para cumprir demandas específicas no desenvolvimento de cada comunidade humana. É neste sentido que qualquer discurso em nome de "valores eternos" não raramente costuma cair em discursos de ódio contra os semelhantes, ou contra aqueles que não compartilham de tais valores.
É interessante notar que o discurso de ódio também é construído socialmente e vai encontrando eco à medida que é propagado, de tal forma que entre nós, em pleno mundo contemporâneo, eles se tornaram a tônica até mesmo entre os cristãos que supostamente deveriam ser os primeiros a irem contra tais discursos. Um movimento interessante que se percebe é que começa-se apenas flertando com o ódio; isto é, começa-se com a pura negligência das questões estruturais que envolvem a situação do sujeito que acaba sendo responsabilizado sem levar em consideração toda a estrutura que o assola; obviamente que a estrutura que envolve o sujeito de forma alguma o determinará de maneira última, mas qualquer análise do comportamento do sujeito que não leve em conta o seu meio não passa de pura análise ideológica.
Em um segundo momento, quando o sujeito assusta, já está tomado pelo ódio de uma forma tal que surgem os discursos de "penas mais duras para bandidos", "bandido bom é bandido morto", "tem que matar esses judeus todos". Assim como esse discurso não nasceu do nada, ele também não cresce do nada. De alguma forma esse discurso alimenta em grande medida um desejo do próprio sujeito, há uma espécie de identificação violenta nesse indivíduo que vê que bandido bom é bandido morto, há uma identificação violenta desse sujeito com o discurso de ódio que ele propaga. Se quisermos podemos até mesmo utilizar as palavras bíblicas de que "a boca fala do que tá cheio o coração". Quando alguém corrobora um discurso violento, um discurso em que despreza o outro, um discurso em que torna a causa alheia uma causa não digna o que se percebe é que esse sujeito de fato pensa assim, no entanto ele não se vê pensando assim; ele pensa que de fato está corroborando uma causa justa. Como aquela criança que realmente acredita que há soluções simples para causas complexas.
Quando esse sujeito defende a castração química para acabar com os estupros, o que ela não percebe é que essa solução pueril em nada resolve o problema, mas apenas desumaniza ainda mais um sujeito já desumanizado. Quando o indivíduo de fato pensa que "bandido bom é bandido morto" o que ele não percebe é que o conceito de "bandido" esconde para tal sujeito um enorme preconceito, pois ele tem em mente apenas um tipo de "bandido" sem em hora nenhuma levar em conta que o termo "bandido" é extremamente amplo, de tal forma, que ele mesmo poderia ser incluído como tal bandido uma vez que o discurso fosse alargado. O "bandido" para tal sujeito é apenas o negro pobre, o morador de rua, o presidiário, mas nunca o que falsifica uma carteira de estudante para entrar num show pagando meia, o que aflige a lei para propagar discursos de ódio, etc. Esse sujeito tomado pelo ódio só vê a partir do seu próprio preconceito. Se bandido é aquele que está agindo contra a lei e deve ser morto, qualquer um que desrespeita a lei deveria ser morto seguindo essa lógica, até mesmo quem propaga tal discurso, pois incitar o ódio é em si um crime. Mas por que não se pede a morte desse bandido e apenas do outro? Na realidade o que se pede é a morte do diferente, a morte daquele por quem se tem preconceito, por quem o sujeito julga ser menos humano que a si próprio de forma que pode ser tratado apenas como um animal.
Flertar com o mal é sempre perigoso, ainda mais porque (como já dizia o mito bíblico) ele nunca chega para o sujeito com sua face má, mas travestido de promessas de segurança." Essa é a mesma tentação do jardim do Éden. A tentação de que por meio de uma ação simples, por meio de uma ação infantilizada, por meio de uma escolha do mais fácil será possível ter um poder maior, uma visão melhor das coisas, um mundo melhor, etc. É por isso que se flerta com o mal. A promessa de segurança que o discurso violento traz se mostra para o sujeito uma solução última devido ao "caos do jardim". "É certo que não morrereis" é ao mesmo tempo a promessa e a crença desse sujeito propagador do discurso de ódio. Ele acredita que ele estará isento do ódio propagado socialmente, ele acredita infantilmente que os odiadores saberão diferenciar o "cidadão de bem" do "bandido"; eles acreditam infantilmente que há uma linha divisória nítida entre eles, quando na realidade não há linha nenhuma que os separa. É neste sentido que nunca se deve aceitar os discursos de ódio sob pena de que a banalização do mal seja a tônica. Tal banalização do mal nunca deve ser a tônica de nenhuma sociedade, pois a partir do momento que ela se torna a tônica estamos à beira do colapso civilizacional.
Uma tática conhecida do nazismo foi transformar todos os judeus em bandidos, em animais, para que a partir da desumanização deles a população não visse que estavam atacando aos seus semelhantes, mas sim a uma espécie menor, a um "não-humano", que por isso "merecia" ser tratado de forma desumanizada. E na maioria das vezes não eram pessoas "ignorantes", não eram pessoas "iletradas", "alienadas", etc. Vários oficiais da SS possuíam diplomas de curso superior, possuíam doutorados em suas áreas, mas mesmo assim aderiram ao discurso propagado de Hitler na desumanização dos judeus, dos gays, etc. O discurso de ódio é construído socialmente assim como qualquer outro discurso, e se aproveita dos momentos de agitação política para se propagar. Este é o mesmo movimento que culminou no holocausto, mas que alguns entre nós insistem em não enxergar a semelhança. É exatamente neste sentido que temos que admitir que não é uma questão de ignorância do sujeito, mas sim de uma identificação do sujeito com tal discurso, de forma que ele "de fato" pensa assim. E isso talvez seja o que mais assusta, ainda mais quando vindo de pessoas que supostamente deveriam propagar o amor ensinado por Jesus, aquele bandido segundo Roma; aquele presidiário, etc.
É por isso que nunca devemos aceitar e nem tolerar os discursos de ódio. Devemos sim lutar contra eles e impedirem, no que depender de nós, que eles se propaguem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário