Se tem algo que é interessante de se notar é que em meio ao caos político e social que o Brasil tem vivido principalmente esse ano diante de tamanhas tentativas internas de desestabilizar o governo há algo que permanece extremamente sólido, há algo que sobressai diante de todo circo acontecido ontem na câmara dos deputados que é a tentativa sempre sórdida de usar Deus como legitimador de uma determinada ação. Era impressionante os diversos deputados que remetiam a Deus para anunciar seu voto, usavam versículos bíblicos, citavam profetas, teve um que até "profetizou" a queda da rede Globo antes de votar. Esses acontecimentos por si só já dão o que pensar a qualquer pessoa minimamente atenta ao que foi falado ontem.
Como alguém que estuda há algum tempo a Religião e sua relação com a hipermodernidade fica bastante claro que as noções de "individualização da crença", "Religião a la carte", "religião light" são boas categorias para tentar dizer a relação entre o homem e a religião nos dias atuais. Uma relação em que o que de fato importa é nada além do bem-estar individual ou no máximo o bem-estar dos mais próximos. Não é pouco sintomática a fala "por Deus e por minha família". Um pouco interessante é notar que "Deus" é generalizado enquanto a família é particularizada. O que isso quer dizer? Quer dizer que a noção de "Deus" se torna algo que pode ser utilizada a revelia sem a preocupação de ter que justificar absolutamente nada. "Deus" se transforma nessa grande muleta, não apenas psicológica (como diria Bonhoeffer), mas uma muleta social, política, moral, etc. É como se qualquer decisão estivesse legitimada pelo simples fato de recorrer a Deus como àquele em nome de quem eu falo. Tal generalização exime o interlocutor de precisar justificar de "qual Deus" ele fala. No caso da sua família a particularização é explícita. Ele não fala em nome "das famílias", mas apenas em nome da "sua família". "Deus", "povo brasileiro" "eleitores" se tornam palavras extremamente vazias de significado nesses discursos retóricos como os que foram vistos ontem.
Nessa mesma esteira a religião se torna um mero instrumento, um banquete self-service onde apenas me sirvo do que acho mais interessante sem precisar ter nenhum tipo de comprometimento com aquilo. Essa religião light, a la carte, instrumental, particularizada, sem vínculo comunitário é o que caracterizava em grande parte a posição assumida pelos diversos deputados ontem em suas falas e obviamente que o Deus implicado nessas falas não poderia ser diferente disso. Mas de qual Deus se falava naquelas justificativas? Que figura é essa a quem atribuíam tamanha importância e agradecimentos?
Algo que permeia o imaginário brasileiro é uma noção de Deus muito advinda dos Estados Unidos por meio das evangelizações no final do século XIX, que por sua vez adveio do protestantismo pietista da Inglaterra do século XVII, que por sua vez veio herdado de um calvinismo do século XVI. Deus nessa tradição é visto como alguém disposto a interferir de forma cabal para a execução dos seus planos. É um deus que não mede esforços para fazer com que sua vontade seja feita acima de todas as coisas. É um deus narcisista, sádico que não medirá as consequências de seus atos. A antiga visão do "Deus dos exércitos" permanece no imaginário brasileiro e foi comprovado ontem de forma bastante clara. Esse Deus conclamado pelos diversos deputados se afasta enormemente da proposta cristã sobre Deus. O que tivemos a oportunidade de presenciar ontem foi que o caráter privado da crença, a noção particularizada de Deus serviu para legitimar e impulsionar os votos de diversos deputados. Citava-se a torto e a direita noções do Antigo Testamento "Feliz a nação cujo Deus é o Senhor" (Sl 33,12) "Os dez mandamentos" (Ex. 20), Salmos diversos, sem a menor preocupação contextual, sem a menor sensibilidade em relação a texto bíblico. O que se via era um uso extremamente instrumental do texto para apenas fazê-lo encaixar em uma proposta individual. Esse "Deus sádico onipresente" assumido como garantidor da moral, mas que tem absolutamente nada a dizer nos dias de hoje.
Os evangélicos neo-pentecostais que são praticamente 90% dos evangélicos do congresso nacional mantém viva essa visão desse Deus arcaico, tenebroso, que "luta contra os inimigos", que contabiliza erros e acertos para cobrar no final; um Deus que diz o que pode e o que não pode, que embasaria toda a moralidade de uma forma extremamente cruel, um Deus déspota que está apenas preocupado na obediência e que se esquece da graça. Que bom faria a esses evangélicos prestarem atenção às cartas de Paulo, aos evangelhos para verem que o Deus dito ali é algo bastante diferente desse Deus bélico pregado por vários.
Uma das teses principais da secularização era a de que com o passar do tempo o mundo ficaria cada vez mais secularizado até chegar um ponto em que as noções sobre Deus, religião, etc se resumiriam à esfera privada. O que vemos é exatamente o contrário de tal tese. Cada vez mais, em um mundo secularizado, a religião vai adquirindo novas formas de se manter viva, quer seja pelo viés positivo, enquanto um discurso que possibilita uma esperança, enquanto um discurso que incita a ação, que não se conforma com o mundo injusto, etc. até sua face mais obscura e temível que é o fanatismo, os discursos de ódio, os discursos manipulativos, etc. Não é de se espantar que diversos movimentos fundamentalistas ganharam bastante adesão nos últimos anos não só no Brasil, mas no mundo.
Se prestarmos atenção ao relato bíblico, e isso desde o Antigo Testamento, perceberemos que a noção de Deus até mesmo em Israel vai evoluindo com o passar do tempo culminando na visão do Deus anunciado por Jesus. O Deus que Jesus anuncia é antes de tudo um deus dos marginalizados, um deus em que o valor da pessoa humana se sobressai sobre qualquer interesse econômico, um deus que vê como inadmissível qualquer relação humana que não se paute pela noção da graça e do amor. O deus cristão é um deus que não fala por meio de ninguém, mas age por meio de muitos. Basta lembrarmos que nos relatos sobre Jesus nunca se vê ele anunciando algo como quem fala "por Deus", mas sempre como quem age "por meio de Deus".
Walter Benjamin na década de 20 do século passado escreveu um texto muito interessante chamado "o capitalismo como religião" em que mostra como que o capitalismo se tornou onipresente a ponto de funcionar em grande parte como uma religião, mas uma religião extremamente fundamentalista que não aceita nada além da devoção total do indivíduo, sem dogmas, sem dia sagrado, sem pausa, mas perene e dominativa. O Deus dessa religião é apenas o dinheiro, que no mundo do capital significa também outra coisa, poder. E nada mais importa. Obviamente que em nossos tempos hipermodernos esse "dinheiro" se configura também de várias outras formas que apenas "notas e moedas", mas tem a ver com terras, bens, negócios, etc. O Deus dos deputados que discursaram ontem não é outro senão esse. Mas como o capital não possui um texto sagrado para si, a atitude perversa dos deputados foi usar o texto bíblico para legitimar seu discurso. Com isso envergonham a si mesmos e deixam à mostra algo que Jesus deixa bem claro nos evangelhos "Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará a um e amará a outro, ou se dedicará a um e desprezará ao outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro" (Mt 6,24- NVI)
Os que discursaram ontem em nome de Deus, muito provavelmente tinham em mente esse Deus Dinheiro que exige de todos não o amor, mas o acúmulo; não a graça, mas a relação dívida/culpa; não o comunitário, mas apenas o particular. Infelizmente temos muitos cristãos entre nós que defendem piamente o domínio do capital sobre tudo e esquecem que a proposta cristã passa longe desse Deus tão déspota.