Em tempos tão nublados e cinzentos temos
que partir de um pequeno panorama da nossa sociedade contemporânea, e acredito
que seja um ponto que não precisamos debater o fato de que nossa sociedade é a
sociedade da perda dos metarrelatos. Um sociedade em que aquilo que antes estruturava
a vida do sujeito de alguma forma, dando algumas balizas para ele estão há
algum tempo perdidas, evaporadas. A religião, o Estado, o discurso classicista,
esse tipo de coisa já a algum tempo perdeu o seu caráter balizador para o homem
contemporâneo. (ou hipermoderno para usar a expressão do Lipovetsky) Da mesma forma qualquer tipo de "universalização dos comportamentos" esbarra no caráter cultural, etc.
O homem
"desbussolado" (Miller) acaba sendo um pouco a condição desse sujeito
contemporâneo. Nesse sentido que talvez entendamos essa "ausência de
limites" diretamente associada à restrição da liberdade. Essa grande
falácia contemporânea parece ignorar o fato de que o ser humano só se constitui
como humano a partir do limite que é imposto pelo outro. O Outro é aquele que
me barra, que me impede de fazer tudo o que eu quero. Reconhecer essa dimensão
do Outro é extremamente importante e de cara rompe com esse ideal do
"homem sem limite".
Esclarecido isso, temos que reconhecer que o outro é
parte fundante daquilo que eu sou e ele também é um ser que talvez pense
diferente de mim. Sem este reconhecimento temos a enorme tendência de querer
colocar todas as pessoas próximas a nós como iguais a nós mesmos, querendo
impor a eles uma certa visão de mundo que o outro não compartilha.
Obviamente que há tantas visões de mundo quanto há
pessoas no mundo, no entanto não podemos cair na grande falácia contemporânea
do relativismo de forma a pensar que todas as visões de mundo são igualmente
válidas pelo simples fato de serem visões de mundo de seres singulares. Tal
relativismo nos conduz não a um reconhecimento do diferente, mas a uma
igualação de todos os pontos de vista sob a égide de um único ponto de vista.
Algo muito bem explicado pela psicanálise é que o
desejo só nasce a partir do limite. A partir da interdição da lei da palavra
surge no homem o desejo. Lei e desejo humaniza o homem, e isto cada vez mais
tem se perdido na contemporaneidade onde o grande imperativo se torna a
ausência do limite como forma de satisfação do homem.
O que deixa o debate extremamente interessante é
porque, pelo menos no Brasil, há sempre uma "acusação" em torno do
caráter "retrógrado" de algumas posturas defendidas. Por mais que o
caráter retrógrado várias vezes assuma um caráter extremamente subjetivo temos
que ter em mente que tal caráter faz parte de determinada sociedade e que isso
demora a ser mudado, de forma que todo tipo de tentativa "na tora" de
alterar o status quo soa extremamente romântica e não raras vezes pouco
efetiva.
Quando alguém parece manifestar uma opinião que é
socialmente tida como "bizarra" (tais como a de várias colocações
infelizes sobre a menina Valentina de 12 anos do Masterchef Brasil Junior), o
que vemos surgir é aquilo que o Durkheim chamava de "coercitividade do
fato social". A sociedade me coage a agir de determinada forma, me coage a
pensar de determinada forma e me coage a manifestar minha "opinião
moral" sobre algo a partir daquilo que é aceitável ou não para determinada
sociedade. Em última instância parece que é a própria sociedade que determina
aquilo que seria ou não condenável e de alguma forma se impõe ao sujeito por
mais que ele queira "sair" de suas garras.
Nesse sentido fica claro que esbarramos sempre em um
estranho e curioso paradoxo que é o fato de defender uma sociedade sem limites
(que por definição é impossível, já nos dizia Freud e tantos outros depois
dele), mas ao mesmo tempo condenarmos atitudes tais como a vista no caso da
menina Valentina do Masterchef Brasil Junior. Já fica bastante óbvio que as
duas posturas são inconciliáveis do ponto de vista teórico. Ou se tem limites
(por mais largos que eles possam parecer), ou não se tem limite algum e tudo
cai em um grande laissez-faire. Como já coloquei acima, a proposta de uma
ausência de limites é completamente inviável pela própria característica do
homem como ser de desejo que necessita do limite. Resta então tentar investigar
"qual é o limite que uma sociedade é capaz de impor aos seus
cidadãos"? Esta questão por si só é extremamente complexa e lida com
diversos arranjos sociais que são difíceis de rastrear, ainda mais em um texto
tão curto.
É impossível respondermos objetivamente à pergunta sobre o limite em uma sociedade. O que podemos fazer é apenas traçar panoramas parcos sobre o que vivenciamos atualmente e a meu ver esse limite vem sendo cada vez mais
alargado, mas sempre esbarra nos próprios arranjos sociais que por mais
criticados que sejam ainda funcionam como pequenas balizas precárias para os
indivíduos. A noção de equilíbrio parece funcionar bem aqui e talvez seja uma
noção muito difícil de ser encontrada na vida prática, pois o mesmo discurso
que exalta o "deixe que o outro viva da forma que ele quiser, ou na sua
forma mais poética "viva e deixe viver", ou ainda "que nada nos
limite"" é o mesmo que tenta condenar os "discursos pedófilos"
quando eles aparecem. Parece que não há uma percepção clara de que os dois
discursos são inconciliáveis. Ou eu "vivo e deixo viver", ou eu
"condeno discursos pedófilos". O equilíbrio é que talvez vá funcionar como um critério para enfrentarmos essas situações espinhosas e apontar para uma proposta dialogal. Percebemos claramente aqui que o caráter legal por mais que possa "condenar o indivíduo" é também algo extremamente espinhoso, pois a lei longe de ser "universal" também se configura a partir da própria sociedade.
Quero deixar claro que não estou defendendo os
discursos pedófilos e nem muito menos defendendo que o ideal seria a sociedade
sem limites. Aponto nesse pequeno texto apenas o caráter paradoxal desse
discurso "pseudo-libertário" que vemos nas redes sociais todos os
dias. Acredito que os discursos pedófilos que vimos nas redes sociais são
extremamente ofensivos e não devem ser apoiados, mas não deixa de ser
interessante notarmos como que a suposta liberdade apregoada se mostra como uma
grande máscara para esconder fissuras estruturais que várias vezes fazemos
questão de esconder.
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