Algo que Jesus sempre enfatizou em seu ensino e a psicanálise nos lembra constantemente, embora nós façamos questão de esquecer, é que o sujeito é completamente responsável por todas as suas ações e cabe a ele e somente ele responder por seus atos. Essa pequena "metodologia" de Jesus se torna extremamente válida para lidarmos com diversas questões no nosso dia a dia.
Inúmeras vezes nos pegamos querendo de alguma forma nos responsabilizar por demandas que não cabe a nós mesmos decidir, mas apenas ao outro. Por mais que tenhamos opiniões diversas, conselhos dos mais variados, dados no computador que comprovam nossa opinião, por mais que tenhamos todas essas coisas não cabe nunca a nós mesmos dar a resposta final quando se trata de uma demanda de outra pessoa.
O outro deve ser sempre soberano em relação às suas próprias demandas, afinal é apenas ele que sabe exatamente em que medida o seu desejo está mobilizado, apenas ele sabe a necessidade que possui, apenas ele será capaz de se assumir diante de sua escolha no momento em que age. A nossa tentativa de tutorar o outro (e às vezes possuímos até os meios materiais para impedir o outro do seu acesso à sua demanda) acaba demonstrando uma dinâmica extremamente perversa de nossa parte. Se por um lado tal "preocupação" se dá em nome de um cuidado, de um zelo pelo outro o qual eu não desejo que faça algo errado (a meu ver, obviamente), por outro lado fica visível um certo gozo em deter uma palavra final sobre as possibilidades desse sujeito, que por contingências diversas, está sob o meu poder no momento. Essa suposta ilusão do poder sobre a demanda do outro me coloca em uma posição extremamente confortável, pois naquilo que eu decido sou completamente absoluto.
Um simples movimento de inversão nos dá exatamente a dimensão do que falo aqui. Basta que nos imaginemos na situação daquele que possui a demanda para que possamos entender em que medida aquilo nos afetará de um modo particular. Mesmo que não me atinja da mesma forma que atinge o outro, tal demanda adquirirá para mim um outro valor, ou seja, ganhará o status de uma dinâmica real e não apenas uma demanda fictícia. Afinal, enquanto a demanda é do outro ela é sempre fictícia para mim. Por isso que é muito mais fácil se importar com a fome na África do que se importar com uma demanda real. A fome da África, por mais real que seja, é, para mim apenas uma "fome etérea", eu não experiencio, eu não vivo essa demanda. Quando a fome me atinge enquanto realidade inexorável, aí sim sou capaz de experienciar a dor da fome. Por isso que toda racionalização é muito simples quando a demanda não é minha. Feuerbach mesmo já nos avisava em seu "A essência do cristianismo" que apenas compreendemos aquilo que experienciamos.
Diversos exemplos de Jesus comprovam que o controle sobre as demandas alheias se mostra pouco profícuo e é desaconselhável na maioria das ocasiões. (podemos abrir exceção aqui em relação às crianças que ainda não são capazes de tomar decisões. Estas talvez precisem de tutoramento, de direção, e às vezes até mesmo de alguém que as impeçam de fazer o que querem, mas isso se deve a apenas o seu caráter infantil)
O exemplo da mulher pega em adultério (Jo 8,1-11) é um exemplo bem interessante disso que falamos aqui. Por mais zelosos que fossem os que a condenavam, por mais que quisessem fazer com que a sua visão (parcial, errônea, seletiva) da lei prevalecesse, Jesus em hora nenhuma advoga para si o poder de decidir sobre a questão. Mas retorna para as próprias pessoas a decisão que caberia a elas e apenas a elas. "Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra". Simples assim. E aí, na condição de adultos (e até mesmo as crianças) um a um foram se afastando até que restasse apenas Jesus e a mulher.
Jesus, mesmo diante de uma situação extrema, sempre foi capaz de respeitar a responsabilidade do outro diante do seu desejo e em hora nenhuma se mostrou como aquele que deveria tutelar o outro por mais que tivesse motivos para querer fazer, por mais errado ele achasse que aqueles homens estivessem, por mais absurda que soasse a proposta de apedrejar alguém em nome de uma lei mal interpretada.
Diversos outros exemplos poderiam ser dados sobre a forma como Jesus lidava com a responsabilidade do outro.
A história de Maria e Marta (Jo 11) em que mesmo elogiando a atitude de Maria, Jesus não condena Marta em sua atitude, mas apenas ressalta que seu foco está naquilo que não é necessário, ou seja, ele entende que a forma que Marta lida com a sua visita é diferente daquilo que considerava ideal, mas isso não lhe dá o direito de impedi-la de fazer o que pensa que deve ser feito. Jesus novamente aqui respeita a condição de adulta de Marta.
A mulher cananéia (Mt 15,27-28) que em momento de desespero clama a Jesus para que resolva sua demanda e ele a atende sem querer que ela aja de forma diferente. "Até os cães comem das migalhas que caem da mesa" é a resposta da mulher que possui uma demanda que se mostra urgente para ela. Mesmo que para Jesus aquilo pudesse parecer indiferente, em hora alguma se pede para que ela aja de forma diferente, e para nossa surpresa, ela é atendida mesmo agindo da forma que age, ou seja, a pessoa é sempre mais importante. (Se pegamos o contexto em que essa cena ocorre veremos que Jesus está explicando aos discípulos sobre a primazia da pessoa em relação à lei. (Mt 15)
Nem mesmo diante de Zaqueu (Lc 19,1-10) que em um ato de conversão se propõe a restituir a quem tivesse roubado, 4 vezes mais, Jesus se mostra como aquele que diz o que o outro deve fazer, mas deixa a critério do próprio Zaqueu se haver com sua responsabilidade. Jesus em hora nenhuma sugere a Zaqueu que ele restitua, em hora nenhuma sugere que faça nada, pois entende que a decisão sobre o que fazer com seu dinheiro, com sua vida, cabe apenas a Zaqueu. No entanto, no momento em que Zaqueu se propõe a restituir o que devia, Jesus afirma: "Hoje entrou salvação nessa casa". Ou seja, no final do processo Jesus apenas constata que a atitude de Zaqueu foi correta, mas em hora nenhuma Jesus se coloca como alguém que deve tomar essa decisão por Zaqueu, por mais que talvez discordasse, por mais que soubesse o que seria melhor para ele. Jesus se apresenta apenas como uma espécie de facilitador (analista talvez) que permite que o outro se responsabilize pelo seu desejo, e para isso é preciso deixar que o outro tome suas próprias decisões.
A pessoa sempre se sobressai à letra. Fixar-se à norma é tão perigoso para a vida como não fixar-se a nada, mas diversas vezes esquecemos o exemplo de Jesus e nos fixamos em dados, na lei e esquecemos que o mais importante é sempre a pessoa e o seu desejo. Deixar que o outro se responsabilize por seus atos é sinal de maturidade da nossa parte, é sinal de respeito para com o desejo do outro, é sinal de que sabemos qual é o nosso limite em relação ao outro e isso é um aprendizado árduo para nós mesmos, pois o poder decidir sobre a demanda do outro é uma tentação que sempre nos persegue e talvez por isso que Procusto seja sempre tão atual em nossos dias.
Fica o convite para que respeitemos a responsabilidade do outro sobre suas próprias decisões, para que a encaremos como adultos e não como alguém que precisa ser tutorada por nós, e que nesse movimento possamos ser facilitadores e não empecilhos para que o outro alcance o que almeja.
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