quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Karl Marx - Pequena introdução didática







Diante de inúmeras discussões que já vi nas redes sociais, das quais já participei de algumas, sempre percebo um desconhecimento gigantesco sobre Marx e uma utilização perversa de inúmeros conceitos marxianos como forma de fazer-se valer da teoria sem conhecimento de causa. Talvez Marx seja um dos filósofos mais mal lidos da história, diga-se de passagem.
Além disso, não raras vezes acontece uma espécie de "salto qualitativo" em que a teoria de Marx é deixada de lado e passa-se a exemplos envolvendo a política brasileira, PT, PSDB, etc. que fazem a questão fugir para outros âmbitos que não uma discussão sobre Marx. Basta lembrar que uma apropriação que se faz de um filósofo é sempre uma apropriação, e se quisermos realmente entender o que o filósofo diz sobre algo devemos sempre recorrer aos seus escritos e não apenas aos comentários, ou aos jargões popularizados de sua obra. Falar de "esquerda", "direita" sem conhecer de fato os conceitos é um ato que deve ser evitado, pois apenas desvirtua o debate e impede seu avanço. É bastante claro que a teoria de Marx tem sofrido várias releituras, reinterpretações (e claro, deturpações) e isso a meu ver demonstra apenas a força de tal teoria filosófica. Penso que o debate é sempre válido e a atualização do pensamento sobre a teoria deve ser sensível ao modelo histórico vigente. Deve soar bastante claro para nós que não devemos ler Marx "atemporalmente", mas estarmos sempre sensíveis às novas configurações históricas que se mostram no intuito de nos capacitar a enxergar o que pode-se aproveitar de determinada teoria e o que precisa ser reconsiderado, ou retraduzido para o nosso tempo. No entanto, só podemos retraduzir e resignificar uma teoria que entendemos, e é exatamente nesse ponto (o entendimento da teoria) que várias vezes falta aos críticos de Marx.


Esse texto tem como pretensão ser uma pequena introdução ao pensamento de Marx ressaltando aspectos centrais do seu pensamento a partir da "Ideologia alemã" escrito por ele e por Engels. Obviamente que devido à estrutura do próprio blog não tem como destrinchar os vários conceitos de Marx e analisá-los a fundo. Para isso há inúmeras referências bibliográficas que podem ser acessadas por quem tiver maior interesse.


Karl Marx foi um filósofo, sociólogo, economista alemão que viveu entre 1818 e 1883. Marx aborda diversos temas em sua extensa obra e em vários de seus escritos aborda a questão do homem. Para ele, esta é uma questão crucial para desenvolver sua filosofia, e por isso ele dedica muito do seu trabalho filosófico à elucidação das relações do homem com a sociedade.

Em seus primeiros escritos, Marx está contra todo o movimento denominado esquerda hegeliana. Marx quer mostrar que a verdadeira mudança na sociedade não se dará apenas quando os homens mudarem suas idéias a respeito das coisas, mas principalmente quando os homens começarem a alterar as suas condições materiais de vida.

A obra de Marx sobre a questão do homem está dispersa em vários de seus escritos. No prefácio da Ideologia Alemã Marx ilustra o movimento da esquerda hegeliana da seguinte forma:

Certa vez, um bravo homem imaginou que, se os homens se afogavam, era unicamente porque estavam possuídos pela idéia de gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, declarando, por exemplo, que se tratava de uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam livres de todo perigo de afogamento. Durante toda sua vida, lutou contra essa ilusão da gravidade, cujas conseqüências perniciosas todas as estatísticas lhe mostravam, através de provas numerosas e repetidas. Esse bravo homem era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães.(MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p 18.)

Para Marx, o ideal neohegeliano de que, uma vez trocada a consciência atual por uma consciência crítica sobre as coisas, os homens estariam livres dos grilhões que os aprisionavam não faz sentido. Para ele, o que se precisa mudar não é a consciência, mas as condições materiais de vida. Só a partir dessa mudança é que o homem poderá realmente ser livre e então mudar a história.
Marx deixa claro na Ideologia Alemã que seus pressupostos são reais, i.e, indivíduos reais em seu meio de vida, nas condições reais em que se situam. Ele explicita que não adotará a linha da esquerda hegeliana, a de uma crítica da consciência, mas tomará a via empírica, a da observação das condições materiais de vida.

O primeiro pressuposto para Marx é a existência de indivíduos humanos vivos. O homem se relaciona com o mundo a partir do seu corpo. Não possui uma essência abstrata através da qual se relaciona com a natureza. Mas os animais também se relacionam com a natureza, e, portanto, o que diferencia o homem dos animais não seria a relação com a natureza e sim a forma como ele se relaciona com a natureza. O homem não é determinado por ela, mas é capaz de ultrapassá-la, é capaz de ir além dela. Nesta superação da natureza ele é capaz de produzir algo que os animais não conseguem: ele é capaz de produzir trabalho. A forma diferenciada pela qual o homem se relaciona com o meio é o trabalho. Para Marx, o homem não cria seus meios de vida a partir do nada. Em suas palavras:
                                                                                                                                 
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir (...). Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles, o que eles são coincide, portanto com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p. 36.)

Tomado sob este aspecto, o homem é um ser que entra em um mundo já dado, e a partir desse dado ele irá construir um mundo cujos significados serão atribuídos pelo próprio homem. A produção do homem está totalmente determinada pelas condições materiais de vida. Há uma conexão íntima entre a estrutura social e a produção.

Marx, ao contrário da esquerda hegeliana, faz ascender a filosofia da terra ao céu. Ele não parte do que os homens imaginam ou representam ou pensam para chegar ao homem de carne e osso, mas parte dos homens agindo no mundo, e, a partir da vida real destes indivíduos, ele expõe os reflexos ideológicos do seu processo de vida. Segundo Marx,

A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a elas correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercambio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.(MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p. 37)

O homem só vive enquanto homem na medida em que é capaz de produzir seu mundo. Esta produção que é a chave do fazer-se humano.  A especificidade do homem está em um tipo de produção visando alcançar o objeto do seu desejo. Enquanto o animal é a sua atividade, o homem desenvolve uma atividade que visa um objeto de sua vontade e é consciente dela. O homem se caracteriza por uma atividade vital consciente e, segundo Marx, é essa atividade vital que o coloca como ente-espécie e como ser livre. Enquanto o animal apenas se ajusta à natureza, tirando dela o estritamente necessário para se manter vivo, o homem produz o que quer, fruto da sua liberdade e da sua indeterminabilidade. Ele produz algo para além da natureza. Ele produz não apenas visando sua adequação, mas produz de forma universal. Esta universalidade da produção do homem pode ser tida como universal na medida em que é superação da condição determinada pela natureza.

Em Marx, o homem se realiza na medida em que vê seu trabalho externado em algo para além de si mesmo. É no processo produtivo que o homem se realiza enquanto homem. E essa produção deve-se dar de forma ativa, não meramente de forma mecânica. Ela é um impulso criador visando alcançar o seu objetivo. Pode-se notar que o homem em Marx é visto como um ser que está em contato com a natureza, dela depende, mas ao mesmo tempo dela se distingue através de uma produção que supera a dos animais por visar não apenas a adequação à natureza, mas a superação da mesma para alcançar o objeto de seu desejo.

No entanto, com a criação da propriedade privada e a divisão do trabalho, esse último deixa de ser expressão do trabalhador e passa a ter uma existência à parte. O produto do trabalho passa a ser um objeto estranho ao homem, passa a dominá-lo de forma a tornar-se uma força independente de quem a produz. No modo de produção capitalista, o trabalho do homem não é mais extensão dele, a diferença entre o homem e o objeto de seu trabalho se efetiva de forma mais clara. Aquilo que é produção do homem adquire um status para além dele.

Trabalhar deixa de fazer parte da natureza do trabalhador, este enquanto trabalha não exterioriza seus sentimentos, sua criatividade, não se realiza, mas antes se nega, sofre e negligencia o seu status de humano e se transforma em mero meio para a produção de algo. Sua atividade não é extensão sua, mas aparece a ele como algo alheio, não pertencente a ele e, portanto, desprovido de significação humana. Este tipo de trabalho torna o homem escravo dos meios de produção. De senhor da natureza (Bacon), ele se transforma em escravo da produção.

Inspirando-se em Kant, Marx refraseia a segunda formulação do imperativo categórico, segundo a qual o homem sempre deve ser um fim em si mesmo e nunca um meio para um fim. Ao se tornar meio para a produção, o homem sai de sua condição de humano e abre mão de seu poder criador frente à natureza. A esse processo, Marx dá o nome de alienação.  A alienação em Marx se refere a um sistema de relações sócio-econômicas que independem da consciência para existir, ela é objetiva, fruto das condições sociais. Como afirma Fischer,

A partir da divisão do trabalho, com todas as suas consequências (propriedade privada dos meios e dos produtos do trabalho, domínio do produto sobre o produtor), o conjunto das forças produtivas e instituições – Estado, igreja, justiça, etc – coloca-se diante dos indivíduos como poderes estranhos, surgindo assim a condição designada por Marx como alienação. Os homens (exceto uma minoria ínfima com atividade criadora) não se reconhecem em suas próprias obras; a produção social existe como fatalidade exterior a eles, a criação eleva-se acima do criador e essa “segunda” natureza, desviada da natureza originária e elementar, aparece ainda mais poderosa, ainda menos passível de direção e controle do que a primeira. [...] A relação objetiva escapou aos indivíduos e se tornou um poder autônomo. (FISCHER, Ernst. O que Marx realmente disse. 1970, p. 31,32.)

O processo de alienação acaba por perverter todos os valores do homem. Este se torna cada dia mais pobre enquanto homem, pois cada vez mais está preocupado em ganhar dinheiro para poder usufruir de bens de consumo, e se torna novamente escravo do sistema criado por ele mesmo.
Essa é a condição da alienação a que Marx se refere. O homem que deveria ser o senhor se torna escravo, e nessa relação se desumaniza.
O que Marx propõe para resolver essa solução é uma re-humanização do trabalho que resgate o aspecto criador do homem e o faça ser novamente humano.

Para que tal re-humanização ocorra, será preciso que a causa de tal processo seja combatida. Ao fazer a análise da situação histórica em que se encontra, Marx constata que, na realidade, o segredo do produto está na prática de quem os produziu. Na oitava tese de Marx sobre Feuerbach se lê:

“Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis.” (MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p. 128.)

Se o homem é um ser da práxis e ela produz um objeto que para ele é um poder estranho, a chave para a compreensão da alienação no campo da práxis é saber a quem pertence tal produto. Marx conclui que tal produto pertence a um ser diferente do homem que o produziu, pertence a um outro, que deverá ser um outro homem que, conseqüentemente, será diferente do trabalhador. A partir do conceito de alienação, chega-se à divisão apontada por Marx entre os detentores do capital e os detentores da mão-de-obra. (Burgesia e Proletariado) Esta divisão é a condição de possibilidade da alienação. Para Marx é o próprio sistema econômico (A infraestrutura) que gera todo o funcionamento social (Super-estrutura) tais como o Estado, a Religião, a Política, a Igreja, a Educação, etc.

O homem, portanto, se vê preso a um sistema que ele mesmo produziu e, no entanto, não consegue sair dele. Marx afirma que no desenvolvimento das forças produtivas chega-se a uma fase em que estas forças não são mais produtivas e sim destrutivas, e graças a isso surge uma divisão entre duas classes. A classe que detém o capital, i.e, detém os meios de produção – os capitalistas –  e os que detém a força de trabalho, mas não detém os meios de produção – os operários.

Esta segunda  classe referida  suporta todos os encargos da sociedade sem aproveitar as vantagens propiciadas pela mesma. Esta classe engloba a maior parte da sociedade e é dela que emana o desejo por uma “revolução radical”.  A percepção desse fato é a primeira condição para tal revolução que, necessariamente, se dará contra a classe dominante. Toda a história caminha baseada na dinâmica da luta de classes. A revolução comunista proposta por Marx alteraria as condições da produção, ela teria o objetivo de superar a própria divisão em classes, uma vez que é feita por quem mais sofre com a referida divisão. Tal revolução possibilitaria ao homem derrubar o modo de produção capitalista e fundar a sociedade sobre uma nova base. O trabalho no comunismo não seria alienado e isso possibilitaria o advento do homem em sua totalidade. Como afirma Fischer, 

“esse comunismo antevisto por Marx era para ele a verdadeira supressão do conflito entre o homem e a natureza e do homem com o homem.” (FISCHER, Ernst. O que Marx realmente disse. 1970, p. 13.)

Superado tal conflito, o homem estaria livre para se realizar como homem.

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