quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Aspectos de Deus em um texto de Leibiniz





Um texto de 10 anos atrás encontrado nos escombros do computador. 

O problema de Deus em Leibniz é um problema extenso e não pretendo aqui esgotar o assunto. O que eu pretendo aqui é fazer uma pequena reflexão sobre o papel de Deus na metafísica de Leibniz.
Em seu texto intitulado “Uma Definição de Deus, ou, de um Ser Independente.”(Definitio Dei Seu Entis A Se), de 1676, Leibniz afirma que Deus é um ser de cuja possibilidade (ou, de cuja essência) segue-se Sua existência. Se um Deus, definido de tal modo, é possível, segue-se que Ele existe. 
O tema da metafísica de Leibniz é a pergunta de como deve ser o mundo, se temos a noção de Deus ? Para Leibniz, Deus é o criador de todas as coisas e é absolutamente perfeito, e uma vez que Ele é um ser perfeito, a sua criação será a mais perfeita possível. Leibniz afirma que a coisa é boa e por isso que Deus faz, e não que Deus faz algo ser bom ou não. A potência máxima para Leibniz não é criar a razão, mas sim, criar de acordo com a razão. Isso segundo ele é o que é ser livre.
Leibniz tem a idéia dos mundos possíveis. Segundo ele, Deus contempla todos os mundos e cria o melhor dos mundos possíveis . Deus age desta forma porque Ele não pode ferir o princípio da não contradição. Criar o melhor dos mundos possíveis é agir de acordo com a razão. A posição de Leibniz se assemelha com a visão medieval que afirmava que Deus não pode fazer contradições lógicas. Deus está também sujeito aos princípios lógicos.
Essa sujeição de Deus a esse princípio no entanto, não limita o poder de Deus. Deus tem todo o poder para fazer todas as coisas, Ele não faz porque se fizesse, implicaria em contradição à sua obra, e uma vez que Deus é perfeito, ele não pode cair em contradição. Por exemplo: Deus não pode criar um mundo onde não existisse o princípio da não contradição, isso porque seria inconsistente ele contemplar um mundo melhor e criar um mundo pior.
Deus também é um ser onisciente. Ele já criou todas as coisas com tudo pré-determinado para elas. As substancias já contem em si tudo que lhe aconteceu, acontece e acontecerá. Só que a substância não sabe disso. Somente Deus sabe de todas essas coisas. Essa onisciência de Deus faz com que Ele tenha a noção completa da substância com todos os seu acidentes. Havia um posição escolástica que defendia que Deus sabe as coisas que a substância fará pelos futuros contingentes. Leibniz no entanto discorda dessa visão e afirma que Deus não pode prever algo que é livre e indeterminado, ao contrário ele já cria a substancia com tudo o que vai acontecer a ela.
Segundo Leibniz, o melhor sempre implica em perfeição, e Deus escolhe sempre o melhor. Leibniz em sua metafísica, quer explicar o problema do mal, e Leibniz resolve este problema pela teoria dos mundos possíveis. O mundo sem o mal, seria contra o princípio de não contradição. Para ele, o mal veio ao mundo para que Deus pudesse colocar neste um bem. A queda de Adão para Leibniz comprova que o melhor mundo possível seria aquele em que Deus se fizesse presente fisicamente nele, e por isso a queda do homem.
Leibniz afirma que o pecado é necessário para um bem maior, pois sem ele, não haveria como implantar a justiça, uma vez que a justiça precisa do pecado para existir. Deus não poderia criar um mundo justo, se não existisse o pecado.
Leibniz não questiona a necessidade de um mundo sem justiça, ou sem pecado. Para ele isso seria possível, uma vez que não havendo pecado, não haveria a necessidade da justiça. Isso não implica em contradição, portanto é possível pensar em um mundo assim.
Deus sendo onisciente e conhecendo todas as coisas, o homem como emanação de Deus, também é um ser livre e age livremente. Leibniz enfrenta um problema que é o de tentar conciliar a graça de Deus com um certo “determinismo” da parte de Deus. A discussão não é própria de Leibniz e remonta a autores medievais que discutiram largamente essas questões.
Segundo Leibniz, o homem peca porque age precipitadamente, mas esse acidente já fazia parte de sua composição. Leibniz resolve o problema da liberdade afirmando que ser livre é agir de acordo com a razão. Deus não determina que alguém vai pecar, o homem peca livremente. E peca livremente porque era possível que ele não pecasse. Segundo Leibniz, o homem pecou porque agiu precipitadamente, mas esse pecado é necessário para um bem maior.
Deus em Leibniz assume um papel central, uma vez que dependemos de Deus para viver e para todas as outra coisas. Ao dizer que o homem é uma emanação de Deus, Leibniz dá ao homem um status de criatura prima de Deus.
Há uma passagem bíblica que diz que os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento as obras de suas mãos. (Salmos 19:1). Leibniz afirma a mesma coisa ao dizer que olhando para o mundo conseguimos enxergar o criador. Essa idéia de Leibniz acerca desse vislumbramento do mundo reflete a perfeição da obra divina em todos os seus detalhes.
Concluindo: Leibniz com os seus mundos possíveis resolve um problema até então insolucionável que é o problema de como deve ser o mundo. O Deus perfeito de Leibniz cria todas as coisas com uma harmonia pré-estabelecida e dá aos homens tudo o que é necessário para que eles vivam bem. Infelizmente agimos precipitadamente, e segundo Leibniz, é por isso que pecamos, mas a graça de Deus faz com que esses nossos erros se convertam no melhor possível para nós.


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A insistência no sentido - Gideão




Uma das coisas interessantes sobre o texto bíblico é a sua insistência na não ausência de sentido do sofrimento. É como se o texto bíblico ousasse sempre afirmar que por mais tenso que possa parecer o momento enfrentado pelo  protagonista da história, sempre haverá um sentido para além do mero ocorrido. Podemos ressaltar diversos personagens, desde o principal deles, Jesus, até alguns outros como Gideão, Davi, Salomão, Raabe, Judas, João, etc. em todas essas histórias a insistência em afirmar o sentido para além do aparente sem sentido do sofrimento se faz presente.

Uma característica dessa insistência no sentido do texto bíblico é a de nos mostrar que, mesmo diante da dor mais forte, há sempre a possibilidade de esperança e nunca a opção do abandono. Quem não se lembrará do próprio Jesus na cruz clamando "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste" como um grito que aponta para uma suposta ausência de sentido em todo aquele sofrimento, mas que no final revela que o salto da fé ainda pode ser dado confiando o seu espírito a quem nunca o abandonou?

Paulo nos dizia que a paz de Cristo excede a todo entendimento e ao mesmo tempo o Eclesiastes nos afirma que há tempo para todo propósito debaixo do sol. A paz que excede o entendimento e a temporalidade que nos cerca parece nos remeter a uma dimensão curiosa da nossa relação com Deus. O Deus que nos transcende e que por mais que tentemos explicá-lo acabaremos apenas falando um pouco mais de nós mesmos e nossas convicções é o mesmo que só pode ser experienciado "debaixo do sol", ou seja, na temporalidade, na nossa finitude, na nossa existência no mundo. O sentido do aparente paradoxo se mostra para além da mera dicotomia entre transcendência e temporalidade. É como se em última instância só pudéssemos vislumbrar um sentido oculto quando percebemos que há algo que não entendemos. De alguma forma é como se o pensamento apressado fosse o que insistisse na ausência de sentido, enquanto o olhar detido buscasse incessantemente tal sentido. 

Um exemplo interessante é o das "provas de Gideão" para saber se Deus o havia escolhido mesmo para a tarefa descrito no livro de Juízes capítulo 6. A situação em Israel estava péssima, pois eles estavam sob domínio dos midianitas. Nesse contexto Gideão recebe a visita de um "anjo do Senhor" que afirma que Deus livraria Israel dos midianitas por intermédio de Gideão. Na história Gideão se mostra muito cético quanto a proposta do anjo e pede então um sinal para ter certeza de que Deus lhe enviara para derrotar os midianitas. Depois das duas provas serem satisfeitas por Deus, Gideão acredita e passa a guerrear para livrar Israel dos midianitas. 

A história de Gideão nos mostra um pouco disso que estamos falando sobre a insistência de sentido que o texto bíblico nos aponta. Aparentemente as provas de Gideão se mostram como infundadas, afinal, é um enviado de Deus que já realizou um milagre na sua frente quem está falando com ele; já está mais que "provado" que Deus estaria enviando Gideão de forma que pedir "mais duas provas" soa algo que nenhum ser humano faria diante de Deus. No entanto, a insistência de sentido se mostra no fato de que é a partir das provas que a temporalidade é capaz de transcorrer e Gideão é capaz de aceitar a tarefa que lhe tinha sido designada. Gideão precisa de tempo para assimilar a tarefa, e as provas dão a ele algo além da mera prova, mas dá a ele um tempo para pensar, refletir e finalmente se encorajar para a tarefa.O tempo é capaz de nos tornar corajosos e sábios para perceber qual a nossa tarefa e o quanto estamos preparados ou não para executá-la. 

Para além disso há o fato de que Gideão não passa do "menor na casa de seu pai", ou seja, é uma "escolha de Deus" extremamente sem sentido para um comandante de um exército no contexto bíblico. A suposta ausência de sentido se mostra também nesse fato de uma escolha pelo menos óbvio, pelo último, pelo fraco, mas nessa escolha o texto visa mostrar um sentido que aponta para o fato de que Deus é capaz de capacitar até o mais fraco, no momento mais difícil, no contexto mais desfavorável. A escolha de Deus e as provas de Gideão nos mostram essa insistência de sentido que aludimos mais acima.

 

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Esdras, Neemias, Trump - O discurso xenofóbico







A Bíblia conta em um dos chamados "livros históricos" a história de Esdras. Esdras era um escriba que voltou do cativeiro juntamente com o povo de Israel para reconstruir os muros da cidade e também reconstruir o templo de Jerusalém que havia sido destruído na invasão babilônica. Esdras havia sido enviado pelo rei Artaxerxes com autoridade para recolher ofertas para a reconstrução do templo, bem como com o poder de nomear juízes e magistrados para Jerusalém. O texto bíblico conta que Esdras era muito zeloso para com a lei de Deus e isso é algo que queria ressaltar a partir da história desse escriba. Depois de iniciar o seu propósito em Jerusalém, Esdras se volta para a lei de Deus e percebe que o povo de Israel está vivendo em grande pecado, pois vários homens das tribos de Israel tomaram para si esposas que não eram israelitas, fazendo com que o povo caísse em pecado e misturasse-se com quem não deveria. 

Podemos perceber que há uma certa noção higienizadora (e porque não dizer, xenofóbica) no meio do Israel bíblico que retorna do cativeiro na Babilônia. A relação com os povos estrangeiros foi sempre problemática se pegarmos alguns relatos do antigo testamento. Mesmo diversas passagens do Deuteronômio admoestando para que se preserve o direito do estrangeiro, admoestando que o estrangeiro deva ser tratado como um igual diante do povo, ainda assim parece que a necessidade constante de reafirmação do direito do estrangeiro aponta para uma falha no mecanismo interno de funcionamento do Israel bíblico. Esta noção xenofóbica fica muito clara nos dois grandes representantes da volta de Israel do exílio, a saber, Neemias e Esdras. Ambos procuram "limpar" Israel de todo contato mais próximo com o estrangeiro. Esdras propõe que os homens casados com mulheres estrangeiras as mandassem embora para as suas terras, e Neemias entra até em brigas para que o povo se afaste dos estrangeiros que estão entre eles. 

A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos me fez lembrar o caso de Esdras e Neemias. O discurso xenofóbico de Trump (aqui como um representante de um discurso que permeia também toda a Europa com a crise dos imigrantes) se assemelha de forma muito grande ao discurso promovido por esses dois líderes de Israel no período pós-exílico. Curiosamente ambos os discursos são feitos em momentos de extrema confusão social. No caso de Neemias e Esdras a confusão é nítida, ou seja, o povo está retornando do exílio, muita gente já com outra vida feita fora de Israel, com outra visão de mundo sendo agora levado a habitar com outro tipo de gente (basta lembrar que há um remanescente de Israel que não havia sido levado para o cativeiro), com outras visões de mundo. As leis que regiam o povo no exílio não são mais válidas no novo contexto, ou seja, o povo se encontra sem nenhuma referência para lidar com suas novas demandas. Esse é o período propício para que os discursos  mais rígidos, fundamentalistas encontrem morada nas mentes e nos corações. 

Diante da ausência de referencial, os discursos de Neemias, Esdras, Malaquias (profeta do período) e recentemente o discurso de Donald Trump contra os estrangeiros (latinos, mexicanos, muçulmanos) soam como "boa saída", soam como "norte" para um povo desbussolado. O caráter xenofóbico desses discursos aponta para uma dimensão interessante em relação ao diferente. Esta aversão ao diferente, ao estrangeiro que habita entre o povo é bastante sintomática. Algo interessante que a psicanálise nos mostra é que nós mesmos somos habitados por um estranho que nos domina sem diversas vezes tomarmos conta desse fato. O inconsciente enquanto instância psíquica nos apresenta como esse grande estrangeiro que habita em nós e que nos incita que o aceitemos. Esse reconhecimento de que eu mesmo não sou senhor em minha própria casa, mas sou assenhorado pelo estranho que em mim habita deveria soar para nós um grande convite para que o diferente fora de mim fosse aceito com mais facilidade. No entanto, essa resistência ao diferente aponta para um grande dificuldade de aceitar o diferente em mim mesmo e quando isso encontra formas de extravasar a xenofobia se faz presente de forma nítida. 

Esdras, Neemias e Trump representam para nós um mesmo tipo de discurso em nome de valores supostamente mais elevados. Esdras e Neemias leem o texto da lei e a interpretam de forma a esquecer o "espírito da lei" que aponta para o oposto do que é promovido por eles, ou seja, aponta para o respeito ao estrangeiro, aponta para o acolhimento do mesmo e não para a sua expulsão, e em nome de uma interpretação da lei promovem a expulsão de vários estrangeiros, o rompimento de diversas famílias e a instauração de um caos social no meio de Israel. Donald Trump da mesma forma, ao incitar os discursos de ódio, um fundamentalismo moral em nome de supostos valores mais elevados, valores "cristãos republicanos"  promove ondas de violência que começaram dias após a eleição presidencial com manifestações de grupos como Klux Klux Klan que pensávamos jamais teriam novamente representatividade para uma expressão pública. Os discursos de ódio contra os latinos, mexicanos, muçulmanos, negros encontraram uma certa legitimação com a eleição de Trump e isso é algo extremamente preocupante para o cenário mundial. 

Esse tipo de discurso sempre encontra resistência e no texto bíblico isso não foi diferente. Os textos de Jonas e de Rute são duas respostas ao discurso xenofóbico promovido por Esdras e Neemias. Jonas que é enviado aos ninivitas e vê que Deus é sempre misericordioso com todos, inclusive para aqueles que estão para além dos muros de Israel, e Rute, a moabita, que encontra graça diante de Deus e é restaurada do que seria a sua desgraça. Ambos os livros apontam para aquilo que a própria lei do deuteronômio insiste veementemente, ou seja, que o estrangeiro deve ser considerado como um igual entre o povo e que sua causa não pode ser deixada de lado ou menosprezada, pois ao fazer isso se desobedece aos princípios divinos. O convite de Deus em relação ao estrangeiro sempre foi o da acolhida, o do socorro, o de considerá-lo como um igual no meio do povo e nunca foi o de menosprezá-lo e expulsá-lo do meio do povo. Percebemos que facilmente nos esquecemos que o diferente deve ser acolhido, pois ele também é imagem de Deus e se mostra a nós como uma oportunidade para que a misericórdia se exerça mais fortemente no nosso meio. 


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A universidade como grande bolha !








Sou habitante de dois mundos, além dos vários outros que todos nós pertencemos pelo fato de sermos seres no mundo. Queria ressaltar dois desses mundos a que pertenço.  O mundo universitário, uma vez que trabalho na UFMG, dou aulas, escrevo artigos e outras coisas referentes a esse ambiente, e também pertenço ao mundo dos cursinhos pré-vestibulares, uma vez que lá também dou aulas, monitorias e todas estas atividades referentes a esse ambiente. 
O que une os dois mundos é o fato de ambos serem ligados à área da educação, mas além dessa semelhança óbvia há uma semelhança ainda maior que é que ambos os ambientes vivem dentro de uma grande bolha. E essa bolha cria um ambiente extremamente ilusório para aqueles que nelas habitam. 

A bolha funciona como uma espécie de invólucro em que tudo o que é feito tem como referente apenas o mundo a que aquela bolha remete. A bolha tem, portanto, a capacidade de criar para si o seu próprio mundo e isso se dá de forma tão natural que raramente se percebe essa estrutura auto-referente, que tem no seu próprio funcionamento a sua razão de ser.  Ao invés de ser algo alheio ao indivíduo que participa da bolha, é como se a bolha se entranhasse no próprio indivíduo de forma que a sua maneira de pensar é condicionada pela própria estrutura a que a bolha sempre acaba remetendo. No ambiente universitário isso é facilmente percebido assim como no universo dos cursinhos pré-vestibulares. 

No ambiente universitário o simples fato de você "pertencer ao meio" já te coloca em condições bastante melhores do que qualquer pessoa que queira "entrar para o meio". Basicamente o ambiente universitário funciona dentro de uma lógica produtivista, ou seja, quanto mais se produz, (artigos, capítulos de livros, congressos, etc.) mais "status" se adquire dentro da bolha universitária e consequentemente mais se é possível solicitar bolsas para as agências de fomento. No final, o que acaba importando mesmo é apenas o status e o valor financeiro adquirido com tal status. Para de alguma forma "medir" as produções há toda uma qualificação de revistas científicas produzidas pela CAPES que variam de Qualis A1 a C2. Obviamente que as produções que de fato "valem alguma coisa" são as publicadas nas revistas Qualis A1 até a B2 e por isso há sempre o esforço para se publicar nestas revistas. Há toda uma questão envolvendo os critérios de avaliação e todos sabemos que a questão é muito mais "quantitativa" que "qualitativa". Longe de haver uma preocupação com a "disseminação do conhecimento" ou "com a discussão racional" o que se percebe é que esses ideais românticos já há muito foi abandonado nesse ambiente, e se resta algo nesse sentido, tem muito mais a ver com casos particulares do que com a estrutura do funcionamento da bolha. O objetivo último daquele que está dentro da bolha universitária é aumentar a sua renda e seu status, daí se instaurar a lógica da competitividade no ambiente acadêmico. 

Para se manter vivo nesse ambiente de competitividade os professores (e seus orientandos de mestrado e doutorado) se indicam entre si para a escrita dos artigos, para as participações e organizações de congressos, participação de bancas de mestrados e doutorados e isso vai sendo registrado no currículo Lattes (meio pelo qual é medido a produção universitária no Brasil) de cada um deles como forma de criar a "produção" do ano para que na hora dos relatórios anuais o currículo Lattes  esteja repleto de coisas feitas durante o ano. Essa produção por parte dos professores/alunos de pós graduação é o que será levado em conta para que a CAPES dê uma nota ao programa de pós-graduação de uma determinada universidade. Essa nota vai de 1 a 7, e quanto mais produção de artigos, congressos, etc. maior a nota do programa e consequentemente maior o número de bolsas de pesquisa concedidas pela CAPES ao programa, o que obviamente aumenta a renda do programa e dos professores vinculados ao programa. Talvez por isso podemos entender o porquê que as atividades de extensão, que tem em vista a comunidade fora da bolha, sejam as que menos recebem a adesão por parte dos professores. Essas atividades de extensão não contam muitos pontos para a avaliação da CAPES, logo podem ser deixadas de lado, ou deixadas para quem tiver algum interesse particular nisso. Dessa forma se instaura um ambiente em que os conchavos, as bajulações e todo tipo de artimanha seja válido para se adquirir um "lugar ao sol". Os comentários giram em torno do próprio mundo da bolha, ou seja, as conversas sempre giram em torno das participações em quais congressos, quantos artigos foram enviados/aceitos para publicação, em qual revista, quem se aposentou, qual a nota do programa de pós-graduação, etc.

Curiosamente, fora da bolha criada ninguém conhece absolutamente nada do que é produzido ali. Isso acaba se transformando em produções que apenas servem para massagear o ego dentro da própria bolha. Absolutamente ninguém fora da bolha universitária irá ler o artigo publicado, o livro organizado; fora da bolha ninguém participará do "congresso internacional", etc. Obviamente para quem está e vive dentro dessa bolha é completamente indiferente o fato de suas produções não saírem da bolha, afinal a produção é feita tendo a bolha como alvo, mas a meu ver isso mostra a que ponto chega o auto-envolvimento dos pertencentes ao que aqui estamos chamando de bolha.

Para qualquer pessoa fora desse grupo dos professores/orientandos que se indicam é praticamente impossível publicar coisas que serão levadas em consideração como "produção" para o currículo Lattes. Como o currículo Lattes é o único currículo avaliado para quem quer "entrar para o meio universitário" como profissional, facilmente se percebe que para se entrar para o meio é preciso que você já esteja no meio. Essa situação extremamente paradoxal é a tônica da bolha universitária e que deixa muita gente boa de fora do mundo da pesquisa pelo simples fato de não estar disposto a entrar na competitividade e bajulações que precisa acontecer para que se entre para a bolha, ou ainda pelo simples fato desta pessoa precisar trabalhar e não poder ficar por conta da universidade.

Qualquer pessoa dentro da bolha universitária sabe que o que está em jogo é apenas status e dinheiro, mas precisa se esconder atrás do discurso da "produção de conhecimento" como forma de apaziguar a consciência e talvez criar um "sentido provisório" para si. Na maioria das vezes quando se organiza um congresso o que se tem em mente não é a disseminação do conhecimento, mas a oportunidade de preencher mais uma linha no currículo Lattes e mais uma publicação advinda do congresso. Até mesmo o próprio questionamento do modo de funcionamento da bolha universitária é feito sob a forma de artigo que serve novamente apenas para preencher mais uma linha no currículo Lattes. Esse auto-envolvimento completamente fechado em si mesmo é o mais visto na chamada bolha universitária.

A ideologia reinante no ambiente universitário é o que permite que a bolha se mantenha. Como bem coloca Zizek, a formulação da ideologia não se dá apenas dentro do território de uma razão cínica (conceito profícuo formulado por Peter Sloterdijk) mas a ultrapassa saindo de sua forma ingênua que pode ser formulada como "eles não sabem o que estão fazendo, mas fazem", e se formulando dentro do registro do "eles sabem exatamente o que estão fazendo e ainda assim fazem." Esse tipo de relação é muito mais complicada de ser combatida, pois não é uma tarefa de "iluminação de consciência", mas sim de mudança de atitude.



sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Lenin e a religião. Pequeno comentário a um texto de Lenin.






Recentemente, a partir da leituras de alguns livros do filósofo esloveno Slavoj Žižek, tive o interesse de ler um pouco da obra de Lenin pelo fato deste autor influenciar bastante àquele. Um livro que achei muito interessante, e refere-se diretamente à minha área de estudos foi o livro "acerca de la religion" escrito por Lenin em 1905. O livro de Lenin é um apanhado de diversos textos, cartas, palestras proferidas por ele durante o longo processo de revolução russa da qual ele foi um dos principais líderes. É um livro muito interessante e traz considerações boas sobre a possível relação entre a religião e o socialismo. No entanto, Lenin nesse livro não fará grandes avanços frente à crítica marxiana sobre o tema da religião, embora possamos ressaltar algumas diferenças entre Lenin e Marx sobre o tema da religião.

Marx parte do princípio de que não é a consciência que determina a sociedade, mas é esta que determina aquela. Segundo ele, “O homem não é um ser abstrato, agachado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o estado, a sociedade.” Portanto, ao se falar sobre o homem, deve-se falar sobre o mundo do homem. O fenômeno religioso deve ser compreendido, portanto, dentro dessa nova perspectiva, não mais como objetivação de uma essência, como propõe Feuerbach, mas como produção social humana. Segundo Marx, “este estado, esta sociedade, produzem a religião, uma consciência invertida, porque eles são um mundo invertido.” 

Sendo uma consciência invertida do mundo, a religião é considerada basicamente falsa, pois nela só encontramos ilusão, não sendo necessário, um processo hermenêutico de interpretação da mesma, já que ela deve ser superada. Nota-se que a interpretação feuerbachiana de religião enquanto objetivação de uma essência humana também é abandonada e adquire em Marx o status de uma nova forma de mistificação. Se não há essência humana, o discurso sobre a religião enquanto objetivação desta essência não passa de mera ilusão. 

Para Marx, a religião é a realização, na fantasia, da essência humana, porque a essência humana não tem realidade alguma. Se a religião é apenas expressão de um mundo invertido, ela não contém nenhuma verdade a ser recuperada. Ela não fala acerca de uma realidade a ser recuperada porque ela nada mais é que o resultado de um mundo a ser aniquilado. Podemos notar que Marx preserva a relação entre religião e “expressão” humana, no entanto, para ele, aquela expressa não o homem, mas a situação do homem sob as condições de repressão. Ela é o suspiro das criaturas oprimidas, e, portanto, o discurso religioso não é sobre a “essência humana”, mas sim sobre as correntes que aprisionam essas criaturas. O que se encontra em tal discurso não é o ser humano, mas as forças que o escravizam e o fazem gritar por religião.

Por isso Marx afirma na  "Introdução a crítica da filosofia do direito de Hegel" que "o sofrimento religioso é ao mesmo tempo a expressão de sofrimento real e o protesto contra um sofrimento real. Ela é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, da mesma forma como ela é o espírito de uma situação sem espírito. Ela é ópio do povo" (MARX & ENGELS, 2008, p. 6.) Acontece no discurso religioso uma inversão, pois as correntes que limitam o indivíduo são cobertas por flores e a dor real é esquecida pelo ópio. O homem, ao invés de tentar se livrar das amarras religiosas que o escravizam, transforma tais correntes em canções de amor. Em Marx não existe nenhum trânsito epistemológico da religião para a realidade. Aquela é inevitavelmente falsidade porque a sua função social é ser ópio. Isso permite defini-la funcionalmente como o discurso que reconcilia o homem com o mundo que o oprime. 

Esse filósofo, portanto, reconhece a religião apenas como um sintoma de uma enfermidade social. E esse ponto vai ser referido por Lacan ao dizer que Marx teria sido aquele que inventou o sintoma. A religião para Marx não contém nenhuma significação epistemológica, é apenas efeito de uma causa diversa de si mesma. Por isso, Marx passa a investigar qual seria a causa geradora da religião. Em vez de uma hermenêutica do discurso religioso, ele propõe uma crítica, a qual seria necessária para que a felicidade ilusória do povo possa ser substituída pela felicidade autêntica. “A abolição da religião como a felicidade ilusória do povo é exigida para a sua verdadeira felicidade. A exigência de que se abandonem as ilusões sobre as suas condições é a exigência para que se abandonem as condições que necessitam de ilusões.” (MARX & ENGELS, 2008, p. 6.)

Tal crítica feita por Marx à religião será a mesma utilizada por Lenin em seu livro.  Dentre diversos outros temas tratados no livro de Lenin, um que gostaria de ressaltar é a instigante pergunta que ele faz sobre se um cristão poderia se unir ao partido socialista. Sua resposta é afirmativa nesse sentido, mas ao mesmo tempo procura ressaltar que a religião se trata de um assunto privado, i.e, não tem problema algum um membro do partido socialista ser cristão, contando que ele não tente encarar o partido socialista como uma extensão de sua religiosidade. Mas sob essa pretensa isenção a respeito da prática cristã logo se evidencia que para Lenin a religião seria um grande perigo, pois ela era capaz de minar os interesses do partido comunista. A religião para Lenin não era, portanto algo "marginal" como para Marx, mas era algo que exigia uma atenção grande por parte do socialismo. Para Lenin, o partido socialista deveria se ater fielmente ao materialismo proposto por Marx e isso era algo que talvez uma pessoa que professasse uma fé encontraria problemas para assimilar. 
O socialismo para Lenin deveria ter na prática a sua primazia, mas sem abrir mão da reflexão sobre seus pressupostos e por isso ele se empenha em uma reflexão sobre a religião. O livro também tem um grande ensaio sobre o papel da educação na formação da juventude socialista que é bastante interessante. 

É sabido que entre nós da América Latina esse tipo de associação foi feita com bastante êxito na chamada "Teologia da Libertação" que, dentre outras coisas, propôs uma leitura bíblica pautada por diversas influências marxistas. Diversos autores muito conhecidos do povo brasileiro encabeçaram o movimento conhecido como Teologia da Libertação, dentre eles podemos citar a figura de Rubem Alves no meio protestante e Leonardo Boff no meio católico, ambos muito influentes na consolidação de tal teologia no Brasil e no mundo. 

Mesmo sendo um livro que traz apenas uma retomada das principais teses de Marx sobre o tema da religião ainda assim é um livro interessante para quem quer ter um primeiro contato com um autor profícuo e muito pouco conhecido pelas suas obras, como é o caso de Lenin. 

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pequenas considerações sobre o primeiro princípio do tetrapharmakón de Epicuro

"Nós não precisamos temer os deuses”

(Para quem não sabe, o tetrapharmakón, ou "os quatro medicamentos" é um conjunto de princípios proposto por Epicuro que propõe 4 ações que conduziriam o homem a uma vida feliz. O primeiro "medicamento" é o que exponho nesse texto, ou seja, a noção de que não devemos temer os deuses.)

A noção que temos de Deus aqui no ocidente se deve muito ao pensamento da igreja católica e as diversas investidas por meio das cruzadas e várias missões das quais temos conhecimento, com o intuito de “cristianizar” a população. Vou procurar aqui, relatar um pouco da concepção que Epicuro faz a respeito dos deuses. Obviamente que, pela riqueza do conceito, não será possível abordar todas as vertentes possíveis de tal "medicamento", mas os apontamentos aqui servem como introdução ao tema. 
Para começar, é preciso definir a concepção que Epicuro faz a respeito dos deuses. A concepção que Epicuro tem a respeito dos deuses é completamente diferente da visão ocidental de Deus. Uma coisa que precisa ser entendida é que  a lógica, a física, e a ética integram plenamente a "teologia epicurista.” ¹
Primeiramente, não existe um monoteísmo em Epicuro, o qual sempre refere aos deuses e nunca a um deus somente. O politeísmo era a crença predominante no mundo grego. Para Epicuro, mesmo o conhecimento que temos dos deuses seja imediato, os deuses não se importam com as coisas dos humanos. Epicuro não nega a existência dos deuses, ele apenas afirma que a imagem que fazemos dos deuses é que é equivocada.
Não devemos atribuir aos deuses nada que não lhes é próprio como a inveja, a ira, e outros atributos que já vemos desde os cantos homéricos. Os deuses para Epicuro viviam em comunidades e filosofam. No entanto, eles se comunicam com oshomens enquanto eles dormem.  Isso se dá através de algo que Epicuro chama de “eflúvios” ou “simulacro”, que seriam como uma membrana que sai dos átomos e alcançam os ouvidos, ou o tátil ou a visão etc.
Para entender a concepção epicurista dos deuses temos que entender também como que os átomos se organizam para eles. Epicuro era um atomista, ou seja, ele assume a posição de que o que existe é apenas átomos e vazio, sendo que dessa forma tudo o que acontece é necessário. Não é um determinismo propriamente dito, pois há um certo desvio na “cascata” que os átomos formam. Para ele, os átomos caem em uma eterna chuva. Assim seria a situação antes da formação de qualquer coisa na cosmologia de Epicuro. Os átomos cairiam sem destino algum, apenas fazendo sua dança em meio ao vazio. No entanto, em algum momento, não sabendo o porque, eles sofrem um desvio e se chocam, começam a se aglomerar e as coisas são formadas a partir daí. Os átomos que antes caiam paralelamente, começam a se desviar e passam a se chocar formando o nosso mundo. Esses desvios eram chamados de “parenclises” ou “clinamem”. Com o clinamem podemos ter a noção de uma ação individual livre. Só porque há o clinamem é possível a liberdade das ações. Esse desvio nega a ideia de um fatalismo. O desvio seria um fruto de uma liberdade, que no caso de Epicuro é essencial para pensar uma ética onde tudo seria átomo e vazio. Esse encontro entre os átomos seria aleatório, ele não tem uma causa, ele não obedece ao princípio de razão, ele poderia ter ocorrido de outra forma que não a que aconteceu. Ele simplesmente aconteceu. Fruto de uma liberdade. Se não houvesse esse desvio, segundo Epicuro, não teria como os compostos se formarem, pois eles caem paralelamente. Isso implica que tem que haver um momento em que esses átomos se desviem para formar os compostos. (Tal ideia de "desvio" e "aleatoriedade" será importantíssimo para o que depois será conhecido como "materialismo aleatório althusseriano".)
Os deuses na filosofia de Epicuro tem uma implicação ética porque eles servem como modelo das ações. Essa é praticamente a única função dos deuses em Epicuro. Não há motivo para temer os deuses porque eles não se importam com os homens e nem com o que eles fazem.
Algo interessante que Epicuro afirma é que os deuses não interferem no nosso destino. Eles apenas vivem em comunidade. Com a noção do clinamem, há uma responsabilidade para nossas ações que independem dos deuses. Nós somos responsáveis pelo que fazemos.
Outro ponto que diverge o pensamento epicurista do pensamento que nós temos a respeito de deus é o fato de que, segundo Epicuro, a noção que nós temos dos deuses é o que nos aprisiona a eles.
Para Epicuro não existe uma vida pós-morte e isso nos impele a viver uma boa vida aqui na Terra. Segundo ele, essa crença em uma vida pós morte apenas nos aprisiona a uma realidade que não existe. Deixamos de viver uma vida aqui em função de uma vida em outro lugar.
Para Epicuro, o verdadeiro conhecimento dos deuses nos liberta pois se sabemos que os deuses não se preocupam conosco e que eles estão apenas preocupado com aquilo que eles mesmos fazem, isso não coloca em nós nenhuma coerção para realizar as nossas ações, na espera de receber algum tipo de favor ou punição por parte deles.
Epicuro faz um corte drástico entre os deuses e os homens. Tal corte se dá não pelo fato de homem querer se achegar aos deuses e estes não o permitirem. Também tal corte não se dá a partir da noção de criação em que Deus seria o criador e o homem uma criatura, uma vez que entre os gregos não há a noção de criação. Os deuses em Epicuro não são deuses criadores ou formadores do universo. O universo para Epicuro é infinito e aberto. Não há uma dependência do homem em relação aos deuses. O corte em Epicuro se dá na falta de relação do homem com os deuses. O homem deve se relacionar com outros homens e não com os deuses. Assim como os deuses só se relacionam com os seus semelhantes, assim também o homem deve se relacionar com os seus semelhantes. A vida na terra é completamente diferente da vida entre os deuses. Não há uma relação direta entre homens e deuses.
O primeiro princípio do tetrapharmakón é realmente muito rico em sua concepção e de uma implicação ética enorme. Segundo Epicuro esse primeiro princípio, se seguido pelos homens pode ajudá-los a viver uma vida feliz e afastada das preocupações, que é o objetivo de todos os homens. É interessante notar que Epicuro começa o tetrapharmakón afastando a ideia de deus como doador da felicidade e colocando o homem como responsável por viver como “um mortal entre os imortais”.

Como opção para quem quiser saber mais sobre esse tema tão interessante, fica a dica de dois livros. O primeiro é o do próprio Epicuro, encontrável em pdf online sem muitos problemas. e o segundo é um livro mais técnico sobre as relações que faço alusão nesse texto. 

Bibliografia:
  1. EPICURO, Carta a Felicidade – Editora Unesp
  2. RODIS-LEWIS, Geneviève – Épicure et son école , collection idées Editions Gallimard 1975



quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O que dará o homem em troca da sua alma? (Mc 8,37) A "morte lenta" do funcionário padrão







A crítica central de Marx ao capitalismo é que o capitalismo desumaniza o homem. O transforma em um mero animal, em um mero "meio" para que se produza mais capital. O homem nesse tipo de sistema não passa de uma peça a ser substituída caso não cumpra a sua função, ele se torna completamente descartável, embora a ideologia que domine seja a de que esse ser humano seria indispensável para o funcionamento da máquina. A esse indivíduo sugado e mutilado constantemente pelo funcionamento institucional restaria apenas a morte lenta transfigurada em "sucesso profissional". 

Ao funcionário padrão resta apenas isso: A cruel dinâmica entre fazer algo com sentido ou não. E por inúmeros motivos se escolhe geralmente o sem sentido enquanto sacrifica todo o resto. 

E assim vai-se morrendo aos poucos pelo que pouco importa. 
Esgota-se lentamente.
Diariamente.
Esgota-se por motivos supérfluos como se toda a vida dependesse daquele detalhe pífio. 
E não adiantam os discursos, não adiantam as admoestações, não adianta nem mesmo o próprio corpo dar sinal de que está demais. 
É como se o clamor por aquilo que o mata diariamente  fosse sempre o mais importante. 

Se o medo não dominasse a pobre alma, talvez haveria a coragem para o basta.
Enquanto isso vai-se embora a vida, a alegria, o casamento, a casa, os amigos, a família. 
Tudo relegado ao segundo plano; tudo transformado em um depois a ser feito que nunca encontra tempo. 
Vai-se morrendo lentamente, vendo a vida passar diante dos seus olhos. 
Vida cada vez com menos sentido, cada vez com menos brilho, cada vez necessitando mais subterfúgios para ser simplesmente suportada, mas nunca mais vivida plenamente.

Qual a última vez que ele foi pleno em algo?
Quando foi a última vez que sorriu sem me preocupar com nada?
Que sentou no sofá e descansou?

Enquanto assimila como dele o discurso empresarial, deixa de lado o que são os seus próprios valores. Há uma dissimetria abismal que o confronta entre o que ele acredita e no que ele se empenha. Dissimetria essa inconciliável, mas mesmo assim continua se empenhando pelo que é vão. Não há mais ânimo para nada. A alma (aquilo que anima) se foi. Restou apenas o invólucro; um corpo sem nada que o motive, nada que o impulsione; apenas mais um dia, mais um trabalho, mais uma rotina.

O que precisa acontecer para que se pare? 
Se nem o colapso do  corpo, nem a angústia constante, nem as dores, nem a ausência de alegria, nem o definhar constante da vida, nem a perda do tempo, nem a perda do contato com a família, amigos, nem a má alimentação são capazes de  fazê-lo parar, o que será? 

Se pelo menos essa morte fosse uma morte digna, se fosse por algo que se acredita, se fosse por algo pelo qual valesse a pena morrer, se pelo menos fosse por isso tal definhar, talvez encontrasse um sentido nisso tudo e uma espécie de "sentimento nobre" o invadiria e serviria para organizar o colapso. 
Mas nem isso acontece. Não há nada de digno nessa morte lenta. Nada que valha a pena nela. É uma morte vã, em nome de algo que simplesmente não se importa com ele. Em nome de algo que o substituirá no mesmo momento em que se demonstrar que já não é capaz. Nesse medo da substituição, nesse medo de perder o menos importante vai se perdendo o que mais importa para ele.

A perversão é total. Perverte-se até o próprio medo. O medo que deveria impelir a ações diferentes deveria ser o medo de perder o que mais importa, mas é como se tentasse se convencer de que para o mais importante fosse necessário apenas o básico, enquanto para o menos importante fosse necessária a própria alma. Inversão completa de valores promovida pelo capitalismo. Nisso o medo persiste e vai ganhando contornos cada vez mais angustiantes. A angústia agora vem de fora, mas também vem de dentro. A pressão é externa, mas é também interna. O funcionário padrão sofre de qualquer jeito. 

Ser de acordo com o padrão em um sistema em que o próprio padrão é o da desumanização do indivíduo é ir contra si mesmo, e dessa forma não resta nada além da precarização da vida, a angústia sem fim, a morte sem sentido, a perda da alma.

"O que o homem poderia dar em troca da sua alma?" (Mc 8,37)





quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O servo impiedoso e flutuabilidade do poder: Uma reflexão de Mt 18,23-34 a partir de Foucault






Jesus nos conta uma pequena parábola em que um servo devia ao rei um determinado valor e quando o rei lhe foi cobrar o servo suplicou para que a dívida lhe fosse perdoada e o rei concedeu tal perdão. No entanto, ao sair da presença do rei, o servo encontra um conservo que lhe deve um valor extremamente menor e o manda prender porque não pagou a dívida. O rei que havia perdoado o servo fica sabendo do ocorrido e pergunta: Por que não usou de misericórdia para com seu conservo da mesma forma que eu fiz contigo? E diante de tal atitude mandou prender o servo até que este lhe pagasse tudo o que devia. (Mt 18,23-34)

Uma noção cara à Foucault é de que o poder possui uma flutuabilidade, ou seja, o poder age em uma microfísica específica que impede a sua polarização estanque. A microfísica do poder (título de um dos livros do Foucault) evidencia que as relações de poder são constantemente construídas e reconstruídas nas diversas relações que estabelecemos diariamente, daí a sua "flutuabilidade". Ao invés de funcionar de forma homogênea e polarizada em que seríamos capazes de identificar sempre de que lado está o poder, Foucault proporá que o lugar do poder se desloca de um lugar para outro dependendo das relações estabelecidas. Ele funciona em redes e por isso deveríamos compreender como se dão as relações de poder em determinadas relações.

Na parábola contada por Jesus, podemos pensar que da mesma forma que o perdão é recebido ele deve ser passado. Aquele que é perdoado também tem ele mesmo a capacidade e o poder de perdoar, evidenciando que as relações de poder não se polarizam, mas flutuam, e talvez seja essa um valioso ensinamento de Jesus nessa pequena parábola. O servo perdoado também tem o poder de perdoar, e assim deve fazer uma vez que entende a flutuabilidade das relações de poder envolvidas em nosso dia a dia. Quando esquecemos, ou não nos damos conta dessa flutuabilidade do poder assumimos o mesmo papel do servo que é perdoado e não perdoa. Tal servo vê o poder de forma estanque, totalmente polarizada, que deve ser exercido pelo uso da força. Ao sair da condição de perdoado e passar à condição daquele que perdoa ele vai reproduzir a mesma noção de um poder estanque. Jesus mostra que tal postura evidencia um desconhecimento de como as relações de poder funcionam, pois na própria parábola rapidamente a relação de poder novamente se inverte para o servo. Ele foi perdoado, passou à condição daquele que podia perdoar, não perdoou, e voltou à condição anterior. Não estaria aqui também uma boa chave para compreendermos a famosa inversão proposta por Jesus de que o senhor é aquele que serve?

A história contada por Jesus talvez seja um excelente conselho para nós ainda hoje. Ou seja, por que não fazemos para com os outros aquilo que reclamamos sua ausência no outro? Por que não somos também tão críticos conosco mesmos a ponto de vermos que estamos apenas reproduzindo o que condenamos? Talvez tão próximo a nós alguém esteja sofrendo pelo mesmo motivo que o nosso e mesmo cabendo a nós alterarmos tal situação fechamos os olhos e concentramos apenas em nós mesmos sendo incapazes de ver que na realidade o sofrimento do qual reclamamos infringimos ao outro na mesma medida.

Na maioria das vezes achamos que já fazemos demais pelo outro, acreditamos piamente que estamos sendo sempre o melhor que poderíamos ser para o nosso próximo, mas diversas vezes falta-nos a sensibilidade de perceber os inúmeros sinais que o outro nos endereça. Sempre me ocorre que a forma como o outro age comigo dá inúmeras pistas sobre a forma que ele gostaria que eu o tratasse. É como se fosse um grande jogo de imitação, mas que várias vezes esquecemos de jogar e acabamos proporcionando no outro um sentimento várias vezes ruim que poderia ser evitado se prestássemos atenção aos pequenos sinais. Obviamente que não é tudo mera imitação, afinal as particularidades do outro devem ser levadas em consideração; sua forma de lidar com as questões da vida, sua forma de encarar os compromissos, ou a ausência deles, etc. Nessa curiosa dinâmica vamos aprendendo a lidar com o outro e crescendo junto com ele.

O servo que demanda o perdão do rei, mas logo em seguida demanda o pagamento do seu conservo mostra essa dissimetria que várias vezes cometemos, afinal é muito simples assumir o lugar de poder em uma determinada relação e esquecer que há pouco tempo atrás éramos nós mesmos aqueles que clamavam por perdão ansiando por sermos perdoados. O rei que perdoa é o mesmo que espera que o perdoado faça o mesmo quando a relação de poder se inverter. Da mesma forma, aquele que foi perdoado deve compreender que o poder de perdoar não está apenas em um lugar específico, mas também está disponível a ele por conta das novas relações estabelecidas.

À medida que compreendemos as diversas possibilidades das relações de poder envolvidas em nosso dia-a-dia somos capazes de compreender melhor as nossas relações e, consequentemente, somos capazes de nos aproximarmos do outro de coração aberto sabendo que constantemente temos a possibilidade de perdoar e sermos perdoados. A noção de que o poder flutua maximiza a liberdade do sujeito na medida em que o coloca constantemente diante de uma nova relação de poder a ser sempre estabelecida diante do outro que o invoca. Talvez por isso Jesus inicia a parábola afirmando que o reino de Deus pode ser comparado a tal parábola. No reino de Deus há sempre a possibilidade da liberdade em relação a demanda do outro, mas constantemente somos chamados a ver na demanda do outro um pouco da nossa própria situação.







terça-feira, 30 de agosto de 2016

Enquanto assistia ao Discovery Home & Health





A guerra aparentemente é algo que sempre acompanhou a história humana, de forma que podemos dizer sem sombra de dúvida que ela faz parte da própria humanidade. A não ser que mantenhamos uma espécie de ilusão em uma época em que todos viviam em paz e segurança, temos que aceitar que a guerra sempre se fez presente. 

Como toda disputa, a guerra, sendo a pior de todas, deixa extremamente marcada a posição do vencedor e do vencido. Ao primeiro é dado toda a glória, o direito aos despojos, os bens, etc. Ao segundo grupo é dado a vergonha, a humilhação, a morte, a tortura, etc. 
Inúmeras guerras poderiam ser lembradas por nós, mas  acredito que nenhum de nós gostaríamos de ter vivenciado alguma guerra in loco; isso porque por excelência a guerra é algo que gera dor, desgraça e grande destruição. 

Outro dia comentei com a Pri que acho extremamente curioso o fato de hoje haver inúmeros programas televisivos que fazem alusão ao caráter bélico. No Discovery Home & Health são vários programas culinários que trazem esse tom.

"Batalha dos cozinheiros"
"Guerra dos cupcakes"
"Guerra dos Donuts"
"Esquadrão da moda"
"Missão em família"

Apenas para citar alguns. 

Fiquei pensando em como talvez essa dinâmica bélica não seria uma forma "soft" de lidar com a constante ameaça de guerra que assola o mundo como um todo, e os Estados Unidos de maneira particular. (Cito os Estados Unidos porque todos esses programas citados acima são produzidos lá.)
Não podemos pensar que o tom bélico em programas culinários não seria uma tentativa de trazer a tona de forma "humorada" um medo que assola o inconsciente ? 
E se for assim, a presença massiva da dinâmica da guerra  em programas que deveriam ser relaxantes não evidenciaria que há algo de incômodo em toda essa dinâmica que não cessa de ser dito e re-dito, mas apenas pela via do simulacro?
Como se de alguma forma estar constantemente vivenciando a experiência de estar em guerra fosse capaz de mitigar o medo latente de que de fato uma grande guerra ocorra.
O caráter administrado do programa de TV possibilita que, por mais tensa que seja, a simulação não fuja do controle, garantindo assim uma sensação de segurança e provisoriedade que mantém a ideia do programa viva. 

A cada novo episódio se estabelece uma nova "missão" que logo terá fim e permitirá que se conheça rapidamente vencedor e derrotado. Mas tanto o vencedor quanto o derrotado não sofrem de fato as consequências da guerra; ela é apenas um simulacro, e por isso pode servir como forma de canalizar o medo latente de que o real da guerra irrompa na realidade.

Se a nossa ideia estiver correta, podemos pensar que o jogo possui uma grande vantagem como forma de nos fazer lidar com aquilo que nos incomoda. Ao transformar em jogo uma determinada dinâmica, ou uma determinada situação, fazemos com que aquilo adquira um sentido provisório que revela a minha limitação em tratar do tema, mas ao mesmo tempo evidencia um caráter defensivo diante do estranho diante de mim. 

As constantes batalhas, missões, guerras funcionam como uma tentativa frustrada de esconder nosso incômodo revelando-o sob a forma de jogo. O jogo, como bem nos lembra Huzinga no seu conhecido livro "homo ludens", é uma forma criativa do homem lidar com a natureza, lidar com a própria vida. O jogo faz parte do ato criador de novas realidades, ele mostra que por algum motivo há de se negar o medo e tentar transformá-lo em outra coisa. 
Essa via "positiva" do jogo, a meu ver, esconde talvez algo de recalcado no sujeito contemporâneo. O medo constante da guerra de todos contra todos, o medo de que a guerra saia do caráter lúdico e invada a realidade. Mas ao mesmo tempo o constante reviver por meio do simulacro da situação que nos causa horror não evidencia algo que Freud já nos anos 20 do século passado nos apontou e chamou de pulsão de morte?

Não estaria a pulsão de morte por trás da satisfação encontrada no simulacro da guerra transformada em jogo? 

Essas foram algumas inquietações que tive assistindo ao Discovery Home & Health outro dia a noite aqui em casa. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O que há entre Atenas e Jerusalém?




Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiae et ecclesiae? Quid haereticis et chrsitianis? 
“O que há de comum entre Atenas e Jerusalém? Entre a academia e a Igreja? Entre os heréticos e os cristãos?” (TERTULIANO. Traité de la prescription contre les hérétiques. Livro VII,9. 1957. p.98 em tradução livre)

Um dos aspectos principais da filosofia medieval é o debate entre a fé e razão. Desde os padres apologistas do primeiro século da era cristã até meados do século 15 essa será a tônica de diversos textos escrito por padres, filósofos, teólogos. A frase que abre esse texto é de um desses padres apologistas chamado Tertuliano (160-220 d.C).  Assim se exprime Tertuliano diante das diversas heresias que enfrenta no século II da era cristã. Tertuliano optará por acentuar mais as diferenças entre a fé cristã e a filosofia grega do que acentuar o que elas teriam em comum. Algo interessante a se ressaltar é que o debate entre Atenas e Grécia será algo que dará corpo à teologia cristã em seu desenvolvimento no ocidente. Embora diversos dos padres apologistas dos primeiros séculos do cristianismo tivessem feito um esforço hercúleo para conciliar os pressupostos da fé cristã com as matrizes gregas, sempre houve algo nesse debate que provocava uma espécie de cisão. É como se de alguma forma Jerusalém nunca pudesse ser completamente incorporada por Atenas. Sempre haveria algo que escapava a essa tentativa de assimilação completa.

Apenas esse tema já daria um trabalho enorme para ser elucidado, ainda mais por ser um tema extremamente debatido em toda a filosofia medieval. Mas algo que gostaria de apontar é que podemos dizer que a ruptura estrutural entre o mundo grego e o mundo cristão se dá a partir da noção de criação.
No mundo grego essa noção é completamente estranha, ou seja, por mais geniais que tivessem sido Platão ou Aristóteles e diversos pré-socráticos antes deles, a concepção de que o mundo tivesse um começo causado por um agente externo que não tinha nada diante de si soava extremamente estranha. O universo para os gregos (em linhas bem gerais sem nos ater às inúmeras diferenças entre os diversos filósofos) era eterno, ou seja, sem princípio nem fim, mas onde, de alguma forma, o movimento estaria presente fazendo com que uma coisa se tornasse outra coisa.

Desde Platão com o Demiurgo que contempla as formas puras e molda a matéria, até os primeiros motores de Aristóteles (ele chega ao número de 55 na sua "Física") como causa primeira e ato puro, a causa do que há estaria ela mesma presente no universo que é gerado, ou seja, o movimento que faz com que uma coisa se transforme em outra está presente na própria estrutura das causas primeiras.
Mesmo o Demiurgo platônico (que talvez mais se aproximaria de uma visão cristã sobre Deus no mundo grego) serviria de explicação para o "como" o mundo veio a existir, mas não explicaria o porquê de tal mundo existir, ou seja, ele não é quem "cria" o mundo, mas apenas aquele que molda a matéria pré-existente a partir das ideias contempladas por ele. Nem o deus platônico, e nem o deus aristotélico criam as coisas, mas agem a partir de coisas pré-existentes.

O cristianismo rompe estruturalmente com o mundo grego ao afirmar que apenas o Deus é o ser, ou seja, apenas nele seria possível conciliar a essência e a existência de forma plena. Essa dedução não teria sido ensinada pelos gregos, mas por Moisés lá no livro do Êxodo. (Ex 3,14) "E disse Deus a Moisés: Eu sou o que sou. Assim dirás ao povo de Israel: EU SOU me enviou a vós". Nesse texto, Deus, ao se nomear como aquele que é, se identifica ao ser e dessa forma se coloca como pleno, ou seja, como alguém que não depende da ninguém além de si mesmo. A metafísica do Êxodo será lido e comentado por diversos padres apologistas no decorrer da história do cristianismo. Se o Ser é o nome próprio de Deus, para o cristianismo, as outras coisas só serão porque seriam criadas por Deus que lhes doa a existência; e o faz por meio de sua vontade. Vincular todo o mundo à noção de criação faz com que a relação entre o homem e o mundo mude drasticamente. Ele não é mais fruto de uma razão imanente, ou fruto de um movimento de uma matéria pre-existente, nem fruto do acaso (como afirmava o epicurismo e sua noção de clinamém), mas fruto de uma vontade criadora que lhe dá a existência.

Jerusalém rompe com Atenas, mas continua lhe sendo extremamente devedora em diversas formulações posteriores, ou seja, a ruptura se dá de maneira estrutural, mas isso em hora nenhuma faz parar o diálogo incessante e interminável entre as duas visões de mundo. Diálogo esse que este brevíssimo texto faz menção.











terça-feira, 9 de agosto de 2016

Da estabilidade à mobilidade (um argumento do senso comum)






Uma característica bastante visível dos nossos tempos hipermodernos é em que medida a noção de "viajar" se tornou uma espécie de objetivo de vida. Se há algum tempo atrás o ideal de uma vida "plena" se ligava à noção de estabilidade em que o ideal de grande parte das pessoas era o de fixar-se em algum lugar, quer seja no emprego, adquirir uma casa, um carro, etc. hoje em dia tal ideal se tornou para muitas pessoas aquilo que mais deve ser evitado diante das inúmeras possibilidades que se abrem no mundo globalizado. 

Nesse contexto nada exemplifica melhor esse novo ideal do que a noção de que o maior objetivo da vida do indivíduo deva ser o de conhecer o maior número de lugares diferentes durante a sua vida. 
O viajar se transforma em um ideal a ser alcançado, o objetivo último do ano de trabalho, o motivo pelo qual vale todo sacrifício. Explorar novos lugares, conhecer novas culturas, se encarar como pertencente a um mundo sem fronteiras em que cada ano se está em um lugar diferente se tornou um movimento muito comum entre o sujeito hipermoderno. 

A noção de "estabilidade" (que em várias medidas é também ilusória) dá lugar à noção de mobilidade, dá lugar à noção de "não-pertença" no qual o que importa é o constante "novo lugar" habitado provisoriamente pelo sujeito. Nenhum tipo de amarra, nenhum tipo de pertença, nenhum tipo de ancoragem; tudo deve fluir para que a vida seja vivida na sua totalidade. Esse sujeito desenganchado remete muito à já famosa ideia do homem líquido de Bauman.

Obviamente que em um mundo regido pela dinâmica do capital a própria noção de "viajar" é facilmente transformada em status, de forma que ostentar os lugares visitados se torna para muitas pessoas o objetivo principal que excede até mesmo a própria viagem. A noção de "acumulação" se torna a tônica. O que passa a importar é o número de lugares visitados, o número de países diferentes, o número de cidades diferentes, etc. De certa forma é como se o capital se diluísse e o antigo "acúmulo de capital" fosse substituído pelo "acúmulo de experiências novas em lugares diferentes". Quanto mais experiências novas em lugares diferentes, mais "rico" seria esse sujeito.

Se há algum tempo atrás o objeto ostentado se vinculava à noção de estabilidade, ou seja, a nova casa, o novo carro, o sítio adquirido para onde poderá ir quando se aposentar; hoje faz muito pouco sentido qualquer uma dessas coisas. 
Quantos de nós já não ouvimos alguém comentando que se pudesse largaria tudo e viveria viajando? Que o maior objetivo da vida dela era o de poder estar a cada mês em um país diferente? Esse tipo de ideal para a existência é algo que permeia cada vez mais a nossa cultura pautada pela mobilidade excessiva. 
O viajar dessa forma marca a mentalidade do homem hipermoderno que vê na suposta estabilidade um grande inimigo a ser combatido. É como se ele aceitasse apenas "estabilidades mínimas", tipo uma "renda fixa", ou "um relacionamento fixo" para que pudesse viver (ilusoriamente) como "alguém sem amarras". 
Tal movimento extremamente ilusório me faz lembrar um texto de Sêneca em que o filósofo comenta, dentre outras coisas, algo sobre as constantes viagens.

"Daí empreender peregrinações vagas e percorrer litorais e, ora no mar, ora na terra, experimentar a mobilidade sempre inimiga das circunstâncias presentes: "Vejam-se regiões selvagens, exploremos os Brutios e as florestas da Lucânia". Entre esses desertos, busca-se, todavia, algo ameno, em que os olhos lascivos aliviem-se da longa aspereza dos lugares horrendos: "Que se dirija a Tarento e se lhe louve o porto, o clima hibernal de céu mais doce e a região ainda bastante opulenta para sua antiga turba... Logo então retornamos a Roma: demasiado tempo os ouvidos estão carentes do aplauso e do fragor; apraz agora gozar também do sangue humano". Uma viagem sucede a outra e espetáculos são trocados por espetáculos. Como diz Lucrécio: - Deste modo cada um sempre foge de si. 
Mas que aproveita, se não foge? Ele segue a si mesmo, e o molesta o mais pesado companheiro. E assim devemos saber que não é dos lugares o mal de que sofremos, mas de nós: fracos somos para suportar tudo, e não somos pacientes quanto aos trabalhos nem quanto aos prazeres nem quanto a nós mesmos, nem quanto a coisa alguma por mais tempo." (SÊNECA. Sobre a tranquilidade da alma. Nova Alexandria. São Paulo. 1994. p. 26-27)

Sêneca lá no século I d.C já aponta um pouco para essa noção das constantes viagens como uma espécie de fuga de si em que a busca constante do novo apontaria apenas para um ausente no sujeito que não cessa de clamar por ser preenchido. 

Obviamente que não há aqui nenhuma intenção de condenar pessoas que viajam, que tem condições para tal, etc. O objetivo dessa pequena reflexão é apenas mostrar como que nessa dinâmica se evidencia um caráter fulcral desse homem hipermoderno que cada vez mais se evapora na busca de novas experiências cada vez mais rápidas com uma dinâmica cada vez mais acumulativa. O capitalismo ganha asas cada vez maiores, e nele, cada vez menos, somos capazes de voar. 



sexta-feira, 22 de julho de 2016

A Toast - Para Allana e Hélio !








"[...] Vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito." (Pv 4,18)

Poderia falar muitas coisas sobre o "casal do ano". Tive o prazer de acompanhar de perto todo o processo de construção desse relacionamento. Desde o primeiro momento até o dia de hoje em que celebramos o início de uma nova fase. Não poderia estar mais feliz por todo o desenvolver de um relacionamento que já começou tão lindamente. Poder presenciar o desenvolvimento, o amadurecimento de vocês dois tem sido algo espetacular e hoje mais do que nunca podemos dizer que o caminho traçado por vocês até o momento é um reflexo daquilo que o texto de Provérbios nos aponta. Cada dia que passa podemos perceber o brilho de vocês aumentando, podemos ver novos rumos sendo traçados, podemos ver o caminho em direção ao "dia perfeito". A conquista de vocês muito me alegra e tenho certeza que alegra a tantos outros que já foram abençoados pela presença de vocês.

Espero de coração que nessa nova fase que se inicia na vida de vocês, vocês possam se conhecer melhor, possam aprender a amar um ao outro a cada dia, possam aprender a lidar com os problemas que virão. 

Que vocês aprendam a cada dia a beleza de se poder compartilhar a vida com alguém disposto a fazer o mesmo. Que aprendam que nem sempre é preciso estar com a razão, que nem sempre a sua opinião tem que valer. Que estar em paz é melhor que estar certo em muitos casos. Que vocês aprendam a dividir o tempo para que sempre haja um lugar para a presença do outro. Que os afazeres do dia a dia nunca seja mais importante que a companhia do outro. 


Que vocês aprendam que o amor tem muito pouco a ver com autoritarismo, com cuidado excessivo, com ciúmes, mas tem muito mais a ver com liberdade, serenidade, paciência. Como diria o Riobaldo do Grandes Sertões Veredas, "Deus é paciência, o resto é o diabo". 

Que vocês possam ter paz, alegrias; que as palavras que serão ditas entre vocês possam ser palavras que tragam vida, palavras que fortaleçam os fracos. Palavras que encorajam os desanimados, palavras que tragam alento aos corações angustiados. 

Que vocês possam ser um. Realmente um. Uma mente, um só coração, um só objetivo. Mas ao mesmo tempo que vocês sejam dois. Pessoas singulares que mantém sua individualidade, que não se anulam em prol do outro. E que vocês sejam muitos; que a vida de vocês seja exemplo para todos aqueles que para ela olharem.

Desejo que vocês compreendam a cada dia que amar significa deixar o outro livre, significa cuidar na medida certa, nem excesso de protecionismo, nem desleixo, pois onde reina o amor ali há sempre liberdade, e onde há liberdade sempre há pressuposto um cuidado. 


Que nunca falte entre vocês a amizade, o sentar à mesa para apreciar uma refeição, um momento de diálogo em que os corações se abrem e a presença divina se mostra no afeto e na acolhida que proporciona esperança.

Que tudo de bom aconteça com vocês. Esse é o meu desejo !

Sigo junto com vocês nessa caminhada ! Sempre juntos !

"Então a nossa boca se encheu de riso e a nossa língua de júbilo" (Sl 126, 2)