quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A oferta da viúva pobre (Lc 21,1-4) - Pequena devocional






Em Lucas 21,1-4 conta-se a história da oferta da viúva pobre que entra no templo para depositar duas moedinhas enquanto os ricos entravam doando altas quantias de dinheiro. Jesus adverte os discípulos afirmando que a viúva deu mais que todos os outros, pois ela deu aquilo que tinha para o seu sustento enquanto os ricos davam do que lhes sobrava. 
A questão financeira da oferta, do compromisso com o templo é algo muito facilmente assimilável pela própria história e não raras vezes se ouve diversas pregações (perversas várias vezes) afirmando que a pessoa deve "cortar na carne e não apenas na gordura" na hora de ofertar, mas a meu ver o exemplo da viúva tem uma dimensão um pouco mais ampla que apenas a questão financeira. 

Para mim, podemos entender o exemplo da viúva vinculado à nossa experiência diante do outro. A atitude da viúva e a atitude dos ricos no texto podem ser entendidas como duas formas possíveis de lidar com a demanda do outro. Se por um lado os ricos tratam a demanda do ponto de vista meramente formal, a viúva encarna a assimilação do outro em sua dimensão mais íntima e isso a colocaria como aquela que foi capaz de "dar muito mais que todos".

Diante de um determinado problema que o outro nos apresenta não raras vezes nos apresentamos como os ricos no texto. Procuramos tratar a questão do outro de maneira distante, como se aquilo não nos dissesse respeito. Vamos até lá "doar" o que nos sobra para apenas cumprir com nossa obrigação social ou familiar. É nesse momento que surge a pergunta meramente formal pra saber se está tudo bem, pra saber como andam as coisas, etc. Nada ali nos move em direção ao outro e várias vezes torcemos para que o outro nem use de honestidade para conosco, pois isso nos demandaria um tempo que não estaríamos dispostos a doar. O mecanicismo da relação se mostra evidente assim como o mecanicismo daqueles que iam aos gazofilácios depositar suas ofertas. Iam apenas cumprir a lei que determinava a doação de ofertas ao templo, mas nada ali os comprometia com a causa. Era puro formalismo. 

Diferentemente, a viúva que doa tudo o que tinha se mostra como um modelo para pensarmos a nossa relação com o outro. Diversas vezes podemos acreditar que aquilo que doamos ao outro em nada o ajuda, em nada coopera com a sua situação, em nada o motiva a dar novos passos, e não raras vezes nos sentimos um pouco incompetentes por não sermos nós mesmos que propiciaremos a saída do outro da sua angústia, da sua tristeza, do seu desânimo. Um senso de responsabilidade nos toma de uma forma um pouco estranha e acreditamos piamente que nossas "duas moedas" em nada ajudará o outro a lidar com seu desamparo e com a sua tristeza. Jesus, no entanto, nos mostra que o valor não está na "quantidade" e aqui, nesse caso específico, nem mesmo na "qualidade" do que se doa, mas apenas no simples ato de se dispor a doar, no simples ato de "doar tudo o que se tem". 

Uma vez que na história a oferta é dada a Deus, o autor do evangelho faz questão de ressaltar que apenas Deus (no caso Jesus) é capaz de saber qual o teor, ou o que move os sujeitos em suas atitudes. Apenas Jesus seria capaz de "avaliar" se os ricos dão do que sobra e a viúva dá tudo o que tem, ou seja, apenas aquele que recebe a oferta é capaz de responder ao nosso ato, e só cabe a esse outro "julgar" se o que se doa é de fato "sobra" ou "tudo o que se tem". Fica bastante claro que para esse "julgamento" acontecer é preciso que uma dinâmica ocorra. A intenção pura do sujeito em relação ao outro é o que permitirá a diferenciação entre a oferta meramente formal da pergunta desinteressada, da pergunta sincera em que o sujeito se compromete de fato com o outro.

Assim como Jesus é capaz de afirmar a supremacia da oferta da viúva em relação a oferta dos ricos, é sempre o outro que será capaz de dizer o teor daquilo que nós oferecemos a ele. Se a oferta que damos a esse outro é uma oferta de darmos "tudo o que nós temos", uma oferta em que o que se oferece é muito mais do que um mero formalismo, mas a nossa própria alma, nossos anseios, nosso comprometimento com o outro, nossa preocupação, nosso desejo, então estamos próximos da oferta daquela viúva que dá tudo o que tem, então podemos "da nossa pobreza" tirar o mais puro ofertar, e isso nos dá a sensação de que a nossa responsabilidade para com o outro está sendo cumprida de forma simples, mas pura.

A oferta da viúva nos remete, portanto, à nossa dimensão de estarmos várias vezes em posição de ofertar algo a um outro. Essa nossa oferta na medida em que é "tudo o que temos" se mostra como uma oferta singular capaz de superar  os mais diversos formalismos, os mais diversos profissionalismos que se mostram na maioria das vezes extremamente mecânicos para o outro e várias vezes pouco o ajuda em suas situações. O se importar a tal ponto de "da sua pobreza" ser capaz de "dar tudo o que se tem" é algo que nenhuma outra oferta é capaz de alcançar. Por isso que a meu ver a oferta da viúva se sobrepõe à oferta dos ricos. A viúva é capaz de se preocupar genuinamente com o outro a quem oferta, e nesse sentido, sua pobreza se transforma em riqueza e sua atitude simples adquire um valor inestimável.

Nosso desafio é sermos como essa viúva pobre diante da demanda do outro, é estarmos dispostos a doar tudo o que temos para que possamos ser refrigério na vida do outro, para que nossas pequenas palavras, nossos pequenos gestos sejam sempre os mais honestos possíveis, longe de meros formalismos ou mecanicismos, para que assim toquemos o outro e sejamos instrumentos de bênção para aqueles que passam por nós. O convite é para que também ouçamos sempre o outro naquilo que ele nos responde, pois aquilo que para nós é sem valor, é "nada" pode significar para o outro muita coisa, pode significar "tudo" em determinados momentos. Assim, da nossa pobreza aparente surge um grande tesouro para o outro, e isso não é pouca coisa. 

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Fissuras discursivas.








Em tempos tão nublados e cinzentos  temos que partir de um pequeno panorama da nossa sociedade contemporânea, e acredito que seja um ponto que não precisamos debater o fato de que nossa sociedade é a sociedade da perda dos metarrelatos. Um sociedade em que aquilo que antes estruturava a vida do sujeito de alguma forma, dando algumas balizas para ele estão há algum tempo perdidas, evaporadas. A religião, o Estado, o discurso classicista, esse tipo de coisa já a algum tempo perdeu o seu caráter balizador para o homem contemporâneo. (ou hipermoderno para usar a expressão do Lipovetsky) Da mesma forma qualquer tipo de "universalização dos comportamentos" esbarra no caráter cultural, etc.

O homem "desbussolado" (Miller) acaba sendo um pouco a condição desse sujeito contemporâneo. Nesse sentido que talvez entendamos essa "ausência de limites" diretamente associada à restrição da liberdade. Essa grande falácia contemporânea parece ignorar o fato de que o ser humano só se constitui como humano a partir do limite que é imposto pelo outro. O Outro é aquele que me barra, que me impede de fazer tudo o que eu quero. Reconhecer essa dimensão do Outro é extremamente importante e de cara rompe com esse ideal do "homem sem limite". 

Esclarecido isso, temos que reconhecer que o outro é parte fundante daquilo que eu sou e ele também é um ser que talvez pense diferente de mim. Sem este reconhecimento temos a enorme tendência de querer colocar todas as pessoas próximas a nós como iguais a nós mesmos, querendo impor a eles uma certa visão de mundo que o outro não compartilha.


Obviamente que há tantas visões de mundo quanto há pessoas no mundo, no entanto não podemos cair na grande falácia contemporânea do relativismo de forma a pensar que todas as visões de mundo são igualmente válidas pelo simples fato de serem visões de mundo de seres singulares. Tal relativismo nos conduz não a um reconhecimento do diferente, mas a uma igualação de todos os pontos de vista sob a égide de um único ponto de vista.
Algo muito bem explicado pela psicanálise é que o desejo só nasce a partir do limite. A partir da interdição da lei da palavra surge no homem o desejo. Lei e desejo humaniza o homem, e isto cada vez mais tem se perdido na contemporaneidade onde o grande imperativo se torna a ausência do limite como forma de satisfação do homem.


O que deixa o debate extremamente interessante é porque, pelo menos no Brasil, há sempre uma "acusação" em torno do caráter "retrógrado" de algumas posturas defendidas. Por mais que o caráter retrógrado várias vezes assuma um caráter extremamente subjetivo temos que ter em mente que tal caráter faz parte de determinada sociedade e que isso demora a ser mudado, de forma que todo tipo de tentativa "na tora" de alterar o status quo soa extremamente romântica e não raras vezes pouco efetiva. 

Quando alguém parece manifestar uma opinião que é socialmente tida como "bizarra" (tais como a de várias colocações infelizes sobre a menina Valentina de 12 anos do Masterchef Brasil Junior), o que vemos surgir é aquilo que o Durkheim chamava de "coercitividade do fato social". A sociedade me coage a agir de determinada forma, me coage a pensar de determinada forma e me coage a manifestar minha "opinião moral" sobre algo a partir daquilo que é aceitável ou não para determinada sociedade. Em última instância parece que é a própria sociedade que determina aquilo que seria ou não condenável e de alguma forma se impõe ao sujeito por mais que ele queira "sair" de suas garras. 

Nesse sentido fica claro que esbarramos sempre em um estranho e curioso paradoxo que é o fato de defender uma sociedade sem limites (que por definição é impossível, já nos dizia Freud e tantos outros depois dele), mas ao mesmo tempo condenarmos atitudes tais como a vista no caso da menina Valentina do Masterchef Brasil Junior. Já fica bastante óbvio que as duas posturas são inconciliáveis do ponto de vista teórico. Ou se tem limites (por mais largos que eles possam parecer), ou não se tem limite algum e tudo cai em um grande laissez-faire. Como já coloquei acima, a proposta de uma ausência de limites é completamente inviável pela própria característica do homem como ser de desejo que necessita do limite. Resta então tentar investigar "qual é o limite que uma sociedade é capaz de impor aos seus cidadãos"? Esta questão por si só é extremamente complexa e lida com diversos arranjos sociais que são difíceis de rastrear, ainda mais em um texto tão curto. 

É impossível respondermos objetivamente à pergunta sobre o limite em uma sociedade. O que podemos fazer é apenas traçar panoramas parcos sobre o que vivenciamos atualmente e a meu ver esse limite vem sendo cada vez mais alargado, mas sempre esbarra nos próprios arranjos sociais que por mais criticados que sejam ainda funcionam como pequenas balizas precárias para os indivíduos. A noção de equilíbrio parece funcionar bem aqui e talvez seja uma noção muito difícil de ser encontrada na vida prática, pois o mesmo discurso que exalta o "deixe que o outro viva da forma que ele quiser, ou na sua forma mais poética "viva e deixe viver", ou ainda "que nada nos limite"" é o mesmo que tenta condenar os "discursos pedófilos" quando eles aparecem. Parece que não há uma percepção clara de que os dois discursos são inconciliáveis. Ou eu "vivo e deixo viver", ou eu "condeno discursos pedófilos". O equilíbrio é que talvez vá funcionar como um critério para enfrentarmos essas situações espinhosas e apontar para uma proposta dialogal. Percebemos claramente aqui que o caráter legal por mais que possa "condenar o indivíduo" é também algo extremamente espinhoso, pois a lei longe de ser "universal" também se configura a partir da própria sociedade. 

Quero deixar claro que não estou defendendo os discursos pedófilos e nem muito menos defendendo que o ideal seria a sociedade sem limites. Aponto nesse pequeno texto apenas o caráter paradoxal desse discurso "pseudo-libertário" que vemos nas redes sociais todos os dias. Acredito que os discursos pedófilos que vimos nas redes sociais são extremamente ofensivos e não devem ser apoiados, mas não deixa de ser interessante notarmos como que a suposta liberdade apregoada se mostra como uma grande máscara para esconder fissuras estruturais que várias vezes fazemos questão de esconder. 





Karl Marx - Pequena introdução didática







Diante de inúmeras discussões que já vi nas redes sociais, das quais já participei de algumas, sempre percebo um desconhecimento gigantesco sobre Marx e uma utilização perversa de inúmeros conceitos marxianos como forma de fazer-se valer da teoria sem conhecimento de causa. Talvez Marx seja um dos filósofos mais mal lidos da história, diga-se de passagem.
Além disso, não raras vezes acontece uma espécie de "salto qualitativo" em que a teoria de Marx é deixada de lado e passa-se a exemplos envolvendo a política brasileira, PT, PSDB, etc. que fazem a questão fugir para outros âmbitos que não uma discussão sobre Marx. Basta lembrar que uma apropriação que se faz de um filósofo é sempre uma apropriação, e se quisermos realmente entender o que o filósofo diz sobre algo devemos sempre recorrer aos seus escritos e não apenas aos comentários, ou aos jargões popularizados de sua obra. Falar de "esquerda", "direita" sem conhecer de fato os conceitos é um ato que deve ser evitado, pois apenas desvirtua o debate e impede seu avanço. É bastante claro que a teoria de Marx tem sofrido várias releituras, reinterpretações (e claro, deturpações) e isso a meu ver demonstra apenas a força de tal teoria filosófica. Penso que o debate é sempre válido e a atualização do pensamento sobre a teoria deve ser sensível ao modelo histórico vigente. Deve soar bastante claro para nós que não devemos ler Marx "atemporalmente", mas estarmos sempre sensíveis às novas configurações históricas que se mostram no intuito de nos capacitar a enxergar o que pode-se aproveitar de determinada teoria e o que precisa ser reconsiderado, ou retraduzido para o nosso tempo. No entanto, só podemos retraduzir e resignificar uma teoria que entendemos, e é exatamente nesse ponto (o entendimento da teoria) que várias vezes falta aos críticos de Marx.


Esse texto tem como pretensão ser uma pequena introdução ao pensamento de Marx ressaltando aspectos centrais do seu pensamento a partir da "Ideologia alemã" escrito por ele e por Engels. Obviamente que devido à estrutura do próprio blog não tem como destrinchar os vários conceitos de Marx e analisá-los a fundo. Para isso há inúmeras referências bibliográficas que podem ser acessadas por quem tiver maior interesse.


Karl Marx foi um filósofo, sociólogo, economista alemão que viveu entre 1818 e 1883. Marx aborda diversos temas em sua extensa obra e em vários de seus escritos aborda a questão do homem. Para ele, esta é uma questão crucial para desenvolver sua filosofia, e por isso ele dedica muito do seu trabalho filosófico à elucidação das relações do homem com a sociedade.

Em seus primeiros escritos, Marx está contra todo o movimento denominado esquerda hegeliana. Marx quer mostrar que a verdadeira mudança na sociedade não se dará apenas quando os homens mudarem suas idéias a respeito das coisas, mas principalmente quando os homens começarem a alterar as suas condições materiais de vida.

A obra de Marx sobre a questão do homem está dispersa em vários de seus escritos. No prefácio da Ideologia Alemã Marx ilustra o movimento da esquerda hegeliana da seguinte forma:

Certa vez, um bravo homem imaginou que, se os homens se afogavam, era unicamente porque estavam possuídos pela idéia de gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, declarando, por exemplo, que se tratava de uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam livres de todo perigo de afogamento. Durante toda sua vida, lutou contra essa ilusão da gravidade, cujas conseqüências perniciosas todas as estatísticas lhe mostravam, através de provas numerosas e repetidas. Esse bravo homem era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães.(MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p 18.)

Para Marx, o ideal neohegeliano de que, uma vez trocada a consciência atual por uma consciência crítica sobre as coisas, os homens estariam livres dos grilhões que os aprisionavam não faz sentido. Para ele, o que se precisa mudar não é a consciência, mas as condições materiais de vida. Só a partir dessa mudança é que o homem poderá realmente ser livre e então mudar a história.
Marx deixa claro na Ideologia Alemã que seus pressupostos são reais, i.e, indivíduos reais em seu meio de vida, nas condições reais em que se situam. Ele explicita que não adotará a linha da esquerda hegeliana, a de uma crítica da consciência, mas tomará a via empírica, a da observação das condições materiais de vida.

O primeiro pressuposto para Marx é a existência de indivíduos humanos vivos. O homem se relaciona com o mundo a partir do seu corpo. Não possui uma essência abstrata através da qual se relaciona com a natureza. Mas os animais também se relacionam com a natureza, e, portanto, o que diferencia o homem dos animais não seria a relação com a natureza e sim a forma como ele se relaciona com a natureza. O homem não é determinado por ela, mas é capaz de ultrapassá-la, é capaz de ir além dela. Nesta superação da natureza ele é capaz de produzir algo que os animais não conseguem: ele é capaz de produzir trabalho. A forma diferenciada pela qual o homem se relaciona com o meio é o trabalho. Para Marx, o homem não cria seus meios de vida a partir do nada. Em suas palavras:
                                                                                                                                 
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já encontrados e que têm de reproduzir (...). Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles, o que eles são coincide, portanto com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p. 36.)

Tomado sob este aspecto, o homem é um ser que entra em um mundo já dado, e a partir desse dado ele irá construir um mundo cujos significados serão atribuídos pelo próprio homem. A produção do homem está totalmente determinada pelas condições materiais de vida. Há uma conexão íntima entre a estrutura social e a produção.

Marx, ao contrário da esquerda hegeliana, faz ascender a filosofia da terra ao céu. Ele não parte do que os homens imaginam ou representam ou pensam para chegar ao homem de carne e osso, mas parte dos homens agindo no mundo, e, a partir da vida real destes indivíduos, ele expõe os reflexos ideológicos do seu processo de vida. Segundo Marx,

A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a elas correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercambio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.(MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p. 37)

O homem só vive enquanto homem na medida em que é capaz de produzir seu mundo. Esta produção que é a chave do fazer-se humano.  A especificidade do homem está em um tipo de produção visando alcançar o objeto do seu desejo. Enquanto o animal é a sua atividade, o homem desenvolve uma atividade que visa um objeto de sua vontade e é consciente dela. O homem se caracteriza por uma atividade vital consciente e, segundo Marx, é essa atividade vital que o coloca como ente-espécie e como ser livre. Enquanto o animal apenas se ajusta à natureza, tirando dela o estritamente necessário para se manter vivo, o homem produz o que quer, fruto da sua liberdade e da sua indeterminabilidade. Ele produz algo para além da natureza. Ele produz não apenas visando sua adequação, mas produz de forma universal. Esta universalidade da produção do homem pode ser tida como universal na medida em que é superação da condição determinada pela natureza.

Em Marx, o homem se realiza na medida em que vê seu trabalho externado em algo para além de si mesmo. É no processo produtivo que o homem se realiza enquanto homem. E essa produção deve-se dar de forma ativa, não meramente de forma mecânica. Ela é um impulso criador visando alcançar o seu objetivo. Pode-se notar que o homem em Marx é visto como um ser que está em contato com a natureza, dela depende, mas ao mesmo tempo dela se distingue através de uma produção que supera a dos animais por visar não apenas a adequação à natureza, mas a superação da mesma para alcançar o objeto de seu desejo.

No entanto, com a criação da propriedade privada e a divisão do trabalho, esse último deixa de ser expressão do trabalhador e passa a ter uma existência à parte. O produto do trabalho passa a ser um objeto estranho ao homem, passa a dominá-lo de forma a tornar-se uma força independente de quem a produz. No modo de produção capitalista, o trabalho do homem não é mais extensão dele, a diferença entre o homem e o objeto de seu trabalho se efetiva de forma mais clara. Aquilo que é produção do homem adquire um status para além dele.

Trabalhar deixa de fazer parte da natureza do trabalhador, este enquanto trabalha não exterioriza seus sentimentos, sua criatividade, não se realiza, mas antes se nega, sofre e negligencia o seu status de humano e se transforma em mero meio para a produção de algo. Sua atividade não é extensão sua, mas aparece a ele como algo alheio, não pertencente a ele e, portanto, desprovido de significação humana. Este tipo de trabalho torna o homem escravo dos meios de produção. De senhor da natureza (Bacon), ele se transforma em escravo da produção.

Inspirando-se em Kant, Marx refraseia a segunda formulação do imperativo categórico, segundo a qual o homem sempre deve ser um fim em si mesmo e nunca um meio para um fim. Ao se tornar meio para a produção, o homem sai de sua condição de humano e abre mão de seu poder criador frente à natureza. A esse processo, Marx dá o nome de alienação.  A alienação em Marx se refere a um sistema de relações sócio-econômicas que independem da consciência para existir, ela é objetiva, fruto das condições sociais. Como afirma Fischer,

A partir da divisão do trabalho, com todas as suas consequências (propriedade privada dos meios e dos produtos do trabalho, domínio do produto sobre o produtor), o conjunto das forças produtivas e instituições – Estado, igreja, justiça, etc – coloca-se diante dos indivíduos como poderes estranhos, surgindo assim a condição designada por Marx como alienação. Os homens (exceto uma minoria ínfima com atividade criadora) não se reconhecem em suas próprias obras; a produção social existe como fatalidade exterior a eles, a criação eleva-se acima do criador e essa “segunda” natureza, desviada da natureza originária e elementar, aparece ainda mais poderosa, ainda menos passível de direção e controle do que a primeira. [...] A relação objetiva escapou aos indivíduos e se tornou um poder autônomo. (FISCHER, Ernst. O que Marx realmente disse. 1970, p. 31,32.)

O processo de alienação acaba por perverter todos os valores do homem. Este se torna cada dia mais pobre enquanto homem, pois cada vez mais está preocupado em ganhar dinheiro para poder usufruir de bens de consumo, e se torna novamente escravo do sistema criado por ele mesmo.
Essa é a condição da alienação a que Marx se refere. O homem que deveria ser o senhor se torna escravo, e nessa relação se desumaniza.
O que Marx propõe para resolver essa solução é uma re-humanização do trabalho que resgate o aspecto criador do homem e o faça ser novamente humano.

Para que tal re-humanização ocorra, será preciso que a causa de tal processo seja combatida. Ao fazer a análise da situação histórica em que se encontra, Marx constata que, na realidade, o segredo do produto está na prática de quem os produziu. Na oitava tese de Marx sobre Feuerbach se lê:

“Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis.” (MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 1979, p. 128.)

Se o homem é um ser da práxis e ela produz um objeto que para ele é um poder estranho, a chave para a compreensão da alienação no campo da práxis é saber a quem pertence tal produto. Marx conclui que tal produto pertence a um ser diferente do homem que o produziu, pertence a um outro, que deverá ser um outro homem que, conseqüentemente, será diferente do trabalhador. A partir do conceito de alienação, chega-se à divisão apontada por Marx entre os detentores do capital e os detentores da mão-de-obra. (Burgesia e Proletariado) Esta divisão é a condição de possibilidade da alienação. Para Marx é o próprio sistema econômico (A infraestrutura) que gera todo o funcionamento social (Super-estrutura) tais como o Estado, a Religião, a Política, a Igreja, a Educação, etc.

O homem, portanto, se vê preso a um sistema que ele mesmo produziu e, no entanto, não consegue sair dele. Marx afirma que no desenvolvimento das forças produtivas chega-se a uma fase em que estas forças não são mais produtivas e sim destrutivas, e graças a isso surge uma divisão entre duas classes. A classe que detém o capital, i.e, detém os meios de produção – os capitalistas –  e os que detém a força de trabalho, mas não detém os meios de produção – os operários.

Esta segunda  classe referida  suporta todos os encargos da sociedade sem aproveitar as vantagens propiciadas pela mesma. Esta classe engloba a maior parte da sociedade e é dela que emana o desejo por uma “revolução radical”.  A percepção desse fato é a primeira condição para tal revolução que, necessariamente, se dará contra a classe dominante. Toda a história caminha baseada na dinâmica da luta de classes. A revolução comunista proposta por Marx alteraria as condições da produção, ela teria o objetivo de superar a própria divisão em classes, uma vez que é feita por quem mais sofre com a referida divisão. Tal revolução possibilitaria ao homem derrubar o modo de produção capitalista e fundar a sociedade sobre uma nova base. O trabalho no comunismo não seria alienado e isso possibilitaria o advento do homem em sua totalidade. Como afirma Fischer, 

“esse comunismo antevisto por Marx era para ele a verdadeira supressão do conflito entre o homem e a natureza e do homem com o homem.” (FISCHER, Ernst. O que Marx realmente disse. 1970, p. 13.)

Superado tal conflito, o homem estaria livre para se realizar como homem.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Jesus e o respeito à responsabilidade do outro sobre si mesmo







Algo que Jesus sempre enfatizou em seu ensino e  a psicanálise nos lembra constantemente, embora nós façamos questão de esquecer, é que o sujeito é completamente responsável por todas as suas ações e cabe a ele e somente ele responder por seus atos. Essa pequena "metodologia" de Jesus se torna extremamente válida para lidarmos com diversas questões no nosso dia a dia.

Inúmeras vezes nos pegamos querendo de alguma forma nos responsabilizar por demandas que não cabe a nós mesmos decidir, mas apenas ao outro. Por mais que tenhamos opiniões diversas, conselhos dos mais variados, dados no computador que comprovam nossa opinião, por mais que tenhamos todas essas coisas não cabe nunca a nós mesmos dar a resposta final quando se trata de uma demanda de outra pessoa.

O outro deve ser sempre soberano em relação às suas próprias demandas, afinal é apenas ele que sabe exatamente em que medida o seu desejo está mobilizado, apenas ele sabe a necessidade que possui, apenas ele será capaz de se assumir diante de sua escolha no momento em que age.  A nossa tentativa de tutorar o outro (e às vezes possuímos até os meios materiais para impedir o outro do seu acesso à sua demanda) acaba demonstrando uma dinâmica extremamente perversa de nossa parte. Se por um lado tal "preocupação" se dá em nome de um cuidado, de um zelo pelo outro o qual eu não desejo que faça algo errado (a meu ver, obviamente), por outro lado fica visível um certo gozo em deter uma palavra final sobre as possibilidades desse sujeito, que por contingências diversas, está sob o meu poder no momento. Essa suposta ilusão do poder sobre a demanda do outro me coloca em uma posição extremamente confortável, pois naquilo que eu decido sou completamente absoluto.

Um simples movimento de inversão nos dá exatamente a dimensão do que falo aqui. Basta que nos imaginemos na situação daquele que possui a demanda  para que possamos entender em que medida aquilo nos afetará de um modo particular. Mesmo que não me atinja da mesma forma que atinge o outro, tal demanda adquirirá para mim um outro valor, ou seja, ganhará o status de uma dinâmica real e não apenas uma demanda fictícia. Afinal, enquanto a demanda é do outro ela é sempre fictícia para mim. Por isso que é muito mais fácil se importar com a fome na África do que se importar com uma demanda real. A fome da África, por mais real que seja, é, para mim apenas uma "fome etérea", eu não experiencio, eu não vivo essa demanda. Quando a fome me atinge enquanto realidade inexorável, aí sim sou capaz de experienciar a dor da fome. Por isso que toda racionalização é muito simples quando a demanda não é minha. Feuerbach mesmo já nos avisava em seu "A essência do cristianismo" que apenas compreendemos aquilo que experienciamos.

Diversos exemplos de Jesus comprovam que o controle sobre as demandas alheias  se mostra pouco profícuo e é desaconselhável na maioria das ocasiões. (podemos abrir exceção aqui em relação às crianças que ainda não são capazes de tomar decisões. Estas talvez precisem de tutoramento, de direção, e às vezes até mesmo de alguém que as impeçam de fazer o que querem, mas isso se deve a apenas o seu caráter infantil) 

O exemplo da mulher pega em adultério (Jo 8,1-11) é um exemplo bem interessante disso que falamos aqui. Por mais zelosos que fossem os que a condenavam, por mais que quisessem fazer com que a sua visão (parcial, errônea, seletiva) da lei prevalecesse, Jesus em hora nenhuma advoga para si o poder de decidir sobre a questão. Mas retorna para as próprias pessoas a decisão que caberia a elas e apenas a elas. "Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra". Simples assim. E aí, na condição de adultos (e até mesmo as crianças) um a um foram se afastando até que restasse apenas Jesus e a mulher. 
Jesus, mesmo diante de uma situação extrema, sempre foi capaz de respeitar a responsabilidade do outro diante do seu desejo e em hora nenhuma se mostrou como aquele que deveria tutelar o outro por mais que tivesse motivos para querer fazer, por mais errado ele achasse que aqueles homens estivessem, por mais absurda que soasse a proposta de apedrejar alguém em nome de uma lei mal interpretada. 

Diversos outros exemplos poderiam ser dados sobre a forma como Jesus lidava com a responsabilidade do outro. 

A história de Maria e Marta (Jo 11) em que mesmo elogiando a atitude de Maria, Jesus não condena Marta em sua atitude, mas apenas ressalta que seu foco está naquilo que não é necessário, ou seja, ele entende que a forma que Marta lida com a sua visita é diferente daquilo que considerava ideal, mas isso não lhe dá o direito de impedi-la de fazer o que pensa que deve ser feito. Jesus novamente aqui respeita a condição de adulta de Marta.

A mulher cananéia (Mt 15,27-28) que em momento de desespero clama a Jesus para que resolva sua demanda e ele a atende sem querer que ela aja de forma diferente. "Até os cães comem das migalhas que caem da mesa" é a resposta da mulher que possui uma demanda que se mostra urgente para ela. Mesmo que para Jesus aquilo pudesse parecer indiferente, em hora alguma se pede para que ela aja de forma diferente, e para nossa surpresa, ela é atendida mesmo agindo da forma que age, ou seja, a pessoa é sempre mais importante. (Se pegamos o contexto em que essa cena ocorre veremos que Jesus está explicando aos discípulos sobre a primazia da pessoa em relação à lei. (Mt 15)

Nem mesmo diante de Zaqueu (Lc 19,1-10) que em um ato de conversão se propõe a restituir a quem tivesse roubado, 4 vezes mais, Jesus se mostra como aquele que diz o que o outro deve fazer, mas deixa a critério do próprio Zaqueu se haver com sua responsabilidade. Jesus em hora nenhuma sugere a Zaqueu que ele restitua, em hora nenhuma sugere que faça nada, pois entende que a decisão sobre o que fazer com seu dinheiro, com sua vida, cabe apenas a Zaqueu. No entanto, no momento em que Zaqueu se propõe a restituir o que devia, Jesus afirma: "Hoje entrou salvação nessa casa". Ou seja, no final do processo Jesus apenas constata que a atitude de Zaqueu foi correta, mas em hora nenhuma Jesus se coloca como alguém que deve tomar essa decisão por Zaqueu, por mais que talvez discordasse, por mais que soubesse o que seria melhor para ele. Jesus se apresenta apenas como uma espécie de facilitador (analista talvez) que permite que o outro se responsabilize pelo seu desejo, e para isso é preciso deixar que o outro tome suas próprias decisões.

A pessoa sempre se sobressai à letra. Fixar-se à norma é tão perigoso para a vida como não fixar-se a nada, mas diversas vezes esquecemos o exemplo de Jesus e nos fixamos em dados, na lei e esquecemos que o mais importante é sempre a pessoa e o seu desejo. Deixar que o outro se responsabilize por seus atos é sinal de maturidade da nossa parte, é sinal de respeito para com o desejo do outro, é sinal de que sabemos qual é o nosso limite em relação ao outro e isso é um aprendizado árduo para nós mesmos, pois o poder decidir sobre a demanda do outro é uma tentação que sempre nos persegue e talvez por isso que Procusto seja sempre tão atual em nossos dias. 

Fica o convite para que respeitemos a responsabilidade do outro sobre suas próprias decisões, para que a encaremos como adultos e não como alguém que precisa ser tutorada por nós, e que nesse movimento possamos ser facilitadores e não empecilhos para que o outro alcance o que almeja.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Onipotência e Preguiça









Eu várias vezes já pensei em ter em minha boca uma palavra mágica.

Algo do tipo "jazam", ou "abracadabra" que abrissem todas as portas que fossem necessárias, que resolvessem todos os problemas que estava enfrentando. Pequenas palavras com grandes significados. (Fale mais desse desejo de onipotência, Veliq !)

Já cheguei a cogitar, mesmo que de brincadeira, que nós temos um número limitado de palavras que podemos falar durante nossa vida. Se ficarmos falando demais um monte de coisas sem sentido, no final da vida não teríamos palavras para dizer as coisas importantes. Elas acabariam.

Seria muito bom se algumas pessoas pensassem assim. Isso evitaria várias besteiras que ouvimos todos os dias. No entanto, percebemos que não é isso que acontece.

Ouvimos tantos blá blás, e isso todo dia, toda hora...

Pouquíssimas destas palavras servem para nós de alguma forma. Isso dá muita preguiça !