terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Apóio o diferente, mas tem que ser igual a mim





Que o Facebook e as diversas redes sociais são um convite para nos mostrarmos como não somos já virou clichê afirmar. Provavelmente já tem até algum post ou alguma imagem no próprio Facebook ou no próprio Twitter afirmando isso. Uma espécie de “crítica interna” à ferramenta utilizada para tal crítica. Paradoxo extremamente curioso.
Algo que sempre achei extremamente interessante é que parece haver uma espécie de “ética” envolvida no uso das redes sociais, que por mais que exacerbe o sujeito “fake”, ele sempre convida a fazer um discurso politicamente correto, ou então, no caso mais mainstream, fazer uma crítica ao discurso politicamente correto demonstrando em que medida tal discurso não é nada além de uma imposição aceita passivamente pelo senso comum.

Posso afirmar que na minha timeline o segundo grupo é o mais constante. Isso acaba gerando aquilo que em outro texto chamei de “homo críticus”. Esse discurso desta suposta “ética” se manifesta de diversas formas, mas uma que acho extremamente interessante é o discurso que vem envolvido em um suposto “apoio ao diferente”.

Curiosamente a pregação de "apoio ao diferente" só vale quando os meus próximos aprovam os supostos diferentes que eu mesmo aprovo. A partir do momento que os meus próximos aprovam os diferentes que eu não aprovo eles devem "deixar de apoiar" o diferente que apoiam para que eu possa querer estar por perto. Se o sujeito apoia alguém como Bolsonaro, ou orgulho de qualquer coisa, ou qualquer coisa que lembre a direita, então ele não é digno de me ter como amigo, afinal, ele apoia algo que eu não aprovo, mas mesmo assim eu tenho que manter o discurso de que se deve apoiar as diferenças.

É mais ou menos como se eu quisesse "facebookicamente próximo" apenas aqueles que pensam iguais a mim, afinal, pra que respeitar o que pensa diferente de mim em um lugar que posso excluir qualquer diferente a qualquer momento? Mas claro que eu excluo o diferente para que eu possa manter o discurso de que se deve apoiar os diferentes.

Na realidade, parece que o que se quer realmente são pessoas que pensem iguais a mim sem ser possível tolerar nenhuma diferença no pensamento. Narcisismo na vida real, narcisismo na vida cibernética. Indiferença na vida real, indiferença na vida cibernética, mas claro que mantendo um discurso inclusivista em relação a todos os diferentes.

(Obviamente que aqui não estamos defendendo o chamado "discurso de ódio" que geralmente aparece muito inflamado quando alguns assuntos são tocados. Claro que não devemos tolerar os intolerantes, afinal isso constituiria o fim de toda a tolerância, no entanto aponto aqui que várias vezes a linha é muito tênue entre o discurso intolerante e o discurso "diferente do meu". Não raras vezes tomamos um pelo outro por não sabermos lidar com isso que aqui chamo de "diferente".)

A meu ver, isso esconde uma dinâmica bastante hipermoderna que trato nesse pequeno texto. Uma intolerância em lidar com essas posturas diferentes, que longe de demonstrar uma "indisposição meramente no nível das ideias", demonstra mais uma intolerância em relação a qualquer um que pense diferente de mim. Obviamente que quando o portador do discurso sou eu, posso chamar isso de meramente uma "indisposição", mas quando o portador é o outro, eu chamo de intolerância. Mas venhamos e convenhamos: qual a medida do "intolerante de verdade" e a "minha indisposição"? Por que que no meu caso é uma "indisposição" e no caso do diferente é uma "intolerância"? A meu ver esse tipo de postura apenas marca a cultura da indiferença e a grande dificuldade em lidar com o diferente. 

Lembremos que na mesma dinâmica da suposta "aceitação de tudo e de todos" o que se pretende é nada além de uma homogeneização das formas de pensar, e isso a meu ver, é evidencia cabal da nossa dificuldade atual de lidar com o diferente. Isso demonstra uma cultura da indiferença tipicamente hipermoderna, onde a dimensão do Outro só entra quando de alguma forma corrobora a mim mesmo. Um narcisismo levado às últimas consequências, ou melhor (na expressão da Colette Soler), um narcinismo.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

8 anos de casados !



"Coloque marcos e ponha sinais nas estradas, Preste atenção no caminho que você trilhou" Jeremias 31:21


Dizem que aos 8 anos de casamento se comemoram bodas de cobre. Sempre achei meio sem sentido essas bodas, mas se alguém teve o trabalho de catalogar e criar o sistema de bodas ele pode até ter algum valor. O que acho interessante é que o sistema de bodas serve para colocar marcos no caminho.

Os marcos servem como pequenos lembretes para nós do caminho percorrido ao longo dos tempos, daí a grande importância que o texto bíblico dá aos marcos. O texto de Jeremias que abre esse post já aponta para isso e talvez as datas comemorativas sirvam exatamente para contemplarmos novamente esses marcos que colocamos no caminho. Pensando assim as bodas podem até fazer algum sentido, embora os objetos escolhidos para elas sejam altamente duvidosos, tais como lã, papel, cobre, etc.

Nesse sentido acho que hoje é dia de “prestar atenção” no caminho trilhado nesses 8 anos. Tem sido um caminho muito prazeroso, cheio de aventuras, alegrias, bons momentos, mas obviamente sem faltar os problemas, as desavenças, etc. como faz parte de toda grande jornada.

Lembrando de onde saímos e pensando onde estamos agora realmente dá muito orgulho dessa pequena jornada até o momento. Jornada esta que tem como melhor de tudo o poder trilhar o caminho junto com outra pessoa que também visa o mesmo objetivo que você. Que também caminha junto mesmo quando os momentos são difíceis.

Esta companhia do caminho é que talvez faça toda a diferença no processo da caminhada. Para além de toda e qualquer idealização da companhia, tendo apenas a presença de um outro que também tem tantas falhas quanto você, posso dizer que o caminho percorrido até agora tem valido a pena.

Meu desejo é que continuemos seguindo, trilhando sempre um ao lado do outro para que quando um fraquejar o outro esteja ali presente para o sustentar e continuarmos olhando para frente e para trás. Vislumbrando o futuro, mas sem nunca esquecer do passado.

Memória e esperança ! E assim seguimos.


Te amo, Priscilinha ! Hoje muito mais que há 8 anos atrás. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

"Não é pelo muito falar que seremos ouvidos" - Um pouco de Gilles Lipovetsky





"Assim como a idade moderna foi obcecada pela produção e pela revolução, a idade pós-moderna é obcecada pela informação e pela expressão. Somos todos Djs, apresentadores e animadores. Democratização sem precedentes da palavra: todo mundo é incitado a ligar para a central telefônica , quer contar algo a partir da sua experiência íntima, ou pode se tornar um locutor e ser ouvido. Isso vale tanto nesse caso como no dos grafites nas paredes de escolas ou no dos inúmeros grupos artísticos: quanto mais a gente se expressa, menos há o que dizer; quanto mais a subjetividade é solicitada, mais o efeito é anônimo e vazio.

Esse paradoxo é reforçado também pelo fato de que ninguém no fundo, está interessado nessa profusão de expressões, como uma exceção que deve ser levada em conta: o próprio emitente ou criador. Isto é, exatamente, o narcisismo, a expressão sem retoques, a prioridade do ato de comunicação sobre a natureza do comunicado, a indiferença em relação aos conteúdos, a assimilação lúdica do sentido, a comunicação sem finalidade e sem público, o remetente transformado em seu principal destinatário. Daí essa pletora de espetáculos, de exposições, de entrevistas, de proposições totalmente insignificantes para qualquer pessoa e que não levam em conta nem mesmo a ambiência; outra coisa está em jogo: a possibilidade e o desejo de se expressar qualquer que seja a natureza da "mensagem", o direito e o prazer narcisista de se manifestar a respeito de nada, por si mesmo, mas retransmitido e amplificado por um meio de comunicação.

Comunicar por comunicar, expressar-se sem qualquer outra finalidade a não ser expressar-se e ser ouvido por um micropúblico, o narcisismo revela, tanto aqui quanto em outros aspectos, a sua conivência com a ausência de substância pós-moderna, com a lógica do vazio." (LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. 1983 p. 24)



"A tese do "progresso" psicológico é insustentável diante da extensão e da generalização dos estados depressivos, outrora reservados em prioridade para as classes burguesas. Ninguém pode se vangloriar de escapar; a deserção social ocasionou uma democratização sem precedente da depressão, o tédio de viver, flagelo hoje em dia difundido e endêmico. Do mesmo modo, o homem "cool" não é mais sólido do que o homem do adestramento puritano ou disciplinar. Na verdade seria mais o inverso.

Num sistema descaracterizado basta um simples acontecimento, um nada, para que a indiferença se generalize e ganhe existência própria. Atravessando sozinho o deserto, levando a si mesmo sem qualquer apoio transcendental, o homem de hoje se caracteriza pela vulnerabilidade. A generalização da depressão deve ser levada em conta não das vicissitudes psicológicas de cada um ou das "dificuldades" da vida atual, mas, sim, da deserção da res pública que foi limpando o terreno até o advento do indivíduo puro, do Narciso em busca de si mesmo, obcecado por si mesmo e, assim sendo, suscetível de enfraquecer ou de desmoronar a qualquer momento diante da adversidade que enfrenta desarmado, sem força exterior.

O homem descontraído está desarmado. Os problemas pessoais assumem, assim, dimensões desmesuradas  e quanto mais os contemplamos, ajudados ou não pelos psi, menos os resolvemos. Aqui se inclui o problema existencial, o ensino ou a política: quanto mais submetidos a tratamento e auscultação mais os problemas se tornam insuperáveis. O que, hoje em dia, não está sujeito à dramatização e ao estresse? Envelhecer, engordar, enfear, dormir, educar os filhos, sair de férias... tudo se transforma em problema. As atividades elementares se tornaram impossíveis.

O tempo em que a solidão designava as almas poéticas e excepcionais terminou, aqui todos os personagens a conhecem com a mesma inércia. Nenhuma revolta, nenhuma vertigem mortífera a acompanha; a solidão se tornou um fato, uma banalidade com a mesma importância dos gestos cotidianos. As consciências não mais se definem pela dilaceração recíproca; o reconhecimento, a sensação de incomunicabilidade e o conflito deram lugar à apatia, e a própria inter-subjetividade se encontra relegada. Depois da deserção social dos valores e das instituições, é a relação com o Outro que, segundo a mesma lógica, sucumbe ao processo de desafeição. O Eu não habita mais num inferno povoado de outros egos, rivais ou desprezados, a relação se apaga sem gritos, sem motivo, em um deserto de uma autonomia e neutralidade asfixiantes.

A liberdade, a exemplo da guerra, propagou-se pelo deserto; já atomizado e separado, cada qual se torna agente ativo do deserto, amplia-o e escava-o, incapaz que é de "viver" o Outro. Não satisfeito em produzir o isolamento, o sistema engendra seu desejo, desejo impossível que, no instante em que é alcançado, revela-se intolerável: o indivíduo quer ser só, sempre e cada vez mais só, ao mesmo tempo em que não suporta a si mesmo estando só. a esta altura o deserto já não tem mais princípio ou fim. (Idem p 29,30)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Lamúrias






Ah, e essa tristeza que invade os nossos corações
Que não sabemos de onde vem nem para onde vai,
Que insiste em permanecer em nós como companheira indesejável
Que insiste em fazer de nós pequenos marionetes ao seu bel prazer.

Ah, essa angústia que não cessa,
Que nos impede de seguir
Que nos paraliza diante do mundo e diante dos nossos afazeres
Que não permite que nem por um segundo deixemos de pensar sobre ela.

Ah, esses momentos de paz que são tão distantes
Que vêm apenas em pequenos momentos e logo se vão
Que nos adianta muito pouco a ponto de duvidarmos da sua existência

Ah, nós que não temos onde esconder
Que estamos sempre diante desse triste espetáculo que nos assola
Que não encontramos saída em nenhuma atividade
Que não podemos usar nenhum escape, pois todos parecem falsos demais

A nós, que só nos resta observar e tentar compreender,
Talvez o caminho seja árduo demais que achamos que será melhor não seguir por ele
Mas no final parece indiferente seguir ou não seguir qualquer caminho
Pois sempre nos encontramos novamente com a mesma tristeza que invade os nossos corações.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Não. Não falo sobre mim !





Às vezes olho para mim e me percebo como longe daquilo que gostaria de já estar sendo no momento. Fica aquela sensação de que já poderia estar tão mais longe, que já poderia ter deixado de lado muitas das coisas com as quais luto até hoje, mas que por causa de inúmeras contingências da vida ainda não alcancei.

Fica a sensação de que talvez aquele ideal com o qual eu constantemente me comparo nunca será alcançado, pois para realizar isso eu teria que ser outra coisa que não eu mesmo.
Aparentemente me sinto incapaz de atingir uma meta que eu mesmo construí, mas claro que não construí sozinho, mas foi construído por outros e assimilado por mim como meu. A fixação nesse ideal quase "etéreo" é o que me faz sofrer todo dia, pois me vejo não suficiente o bastante, não bom o bastante, não inteligente o bastante, não bonito o bastante, enfim, não me vejo o bastante para ser o que gostaria que fosse.
Dessa forma tudo que faço parece pouco. Em tudo que conquisto fico sempre com aquela sensação de que poderia ter feito melhor, poderia ter dedicado mais, poderia ter gasto um pouco mais de tempo e mudado aquele pequeno detalhe que ninguém reparou a não ser eu mesmo. Diante disso novamente sofro por não conseguir novamente alcançar aquele projeto forjado para mim.

Triste vida essa minha correndo atrás do vento. Correndo atrás da perfeição, que por definição, eu nunca poderei alcançar por ser eu mesmo imperfeito. O que escondo talvez seja apenas a minha insegurança, seja apenas essa triste visão que tenho sobre mim mesmo, mas que meus afazeres e meu perfeccionismo insiste em esconder. Tudo se configura, portanto, como um grande semblante diante desse nada que me assola e do qual não tenho para onde fugir. É como se o abismo habitasse no mais íntimo do meu ser e no meu constante olhar para ele, ele insistisse em olhar de volta, como já nos comentava Nietzsche em tempos idos. 

Se tento esconder desse abismo me encontro mais próximo dele do que quando finjo que ele não existe. Inútil às vezes é alçar a voz, pois não há ninguém para ouvir, ninguém disposto a ouvir, ou disposto a parar para que essas coisas em mim cessem. Se elas insistem em persistir quem sou eu para lhes calar dentro de mim? Quem senão um outro para fazer calar isso dentro de mim? Esse outro sempre escondido, sempre distante, sempre envolto em seus afazeres, sempre indiferente para tudo e para todos. Esse outro que aparece também como uma máscara para o vazio que ele também representa, pois não está aí de fato, mas apenas finge estar.

Não seria esse outro almejado uma outra idealização inalcançável? Não seria a tentativa de encontrar um auxílio fadada ao fracasso diante da nossa hipermodernidade onde o que importa é mais que tudo o indivíduo e seu sucesso pessoal? Não seria talvez a hora de abandonar a minha esperança desse consolo e assumir resilientemente esse abismo que em mim habita e que se encontra também fora exemplificado por aquele nada que tudo nadifica?

Se for assim, como é possível suportar tamanho abandono?

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste !" gritou certa vez um homem quando confrontado com tamanho abandono. O que lhe restou depois disso foi apenas o último suspiro e nada mais. Próximo a ele apenas alguns que nada podiam fazer a não ser contemplar o fim daquele que foi abandonado. No último suspiro o homem abandonado "entrega o seu espírito", mostrando com isso que apesar do abandono, apesar da falta de sentido de sua morte, ele ainda acreditava que haveria alguém em quem pudesse se entregar como último ato de fé.

Mas será que eu sou capaz daquele ato de fé daquele homem abandonado? Será que para mim haverá ainda a esperança da última entrega diante do mesmo abandono? Se por definição não há nenhuma garantia de que meu salto encontrará uma mão que me segure no final, resta talvez apenas tentar que o último suspiro valha a pena.

E quem sabe ali, no último suspiro, perceber que todo esse trabalho não foi em vão.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A elitização da universidade pública. Observações iniciais para um diálogo.






Não sou a favor da privatização das universidades. De forma alguma, muito pelo contrário, sou a favor de uma escola pública, de qualidade. No entanto, penso que essa escola pública deva ser para quem precisa da escola pública uma vez que claramente temos um problema de divisão de renda envolvida. A meu ver, a forma como a universidade publica funciona hoje não funciona, pois deixa de fora a maior parte das pessoas que realmente dependem da universidade pública caso queiram ter uma formação superior, ou então reservam para essas pessoas os cursos que farão com que elas permaneçam na condição social a que pertencem.

Basta olhar os cursos "de rico" das federais, tipo medicina, engenharia química, direito, etc, e ver quantas pessoas de classes mais desfavorecidas estão frequentando esses cursos. Sabemos que a maior parte dos que frequentam tais cursos vem de uma elite e que teriam perfeitamente condição de estudar em uma escola particular, mas não querem fazer isso porque o ensino da universidade pública várias vezes é melhor.
A elitização da formação superior se mantém basicamente da mesma forma. É claro que tem havido um aumento de acesso considerável no ensino superior nos últimos anos, mas se olharmos bem, veremos que as classes menos favorecidas ingressam no ensino superior apenas em cursos de licenciaturas, tirando claro as exceções.

Quando olhamos para as faculdades particulares vemos que a maioria das pessoas que as frequentam  são trabalhadores que precisam pagar as mensalidades ou então dependem de financiamento tipo PROUNI (que acho um programa de incentivo fantástico) ou então o FIES (que agora foi aberto para a pós-graduação), tirando obviamente as exceções. Em um mundo ideal, não vinculado à dinâmica do capital, etc, toda a educação do sujeito seria gratuita, desde a escola infantil até o doutorado, e isso seria para todos independente do curso que o sujeito optasse por fazer, no entanto, sabemos que a coisa, pelo menos no Brasil, não funciona assim, e que o sistema educacional é feito para de alguma forma manter quem está no poder, no poder. 

Se a realidade das universidades federais é essa, acho bem defensável que ela seja paga para quem pode pagar e gratuita para quem não pode pagar. Sabemos que proporcionalmente os mais ricos são os que menos contribuem no Brasil. O montante maior de contribuição vem da classe média e da classe mais pobre do país que pagam impostos que chegam a mais de 25% dos rendimentos enquanto as classes mais abastadas pagam bem menos. Basta a gente lembrar do drama que eh a implementação de impostos sobre as grandes fortunas no país. A meu ver a universidade pública tinha que ser para quem não pode pagar. O critério não deveria ser meritocrático, mas a meu ver, deveria ser socioeconômico. Claro que poderia haver cotas para os mais ricos, mas a prioridade deveria ser a população que não pode pagar por seus estudos.
 
Um outro exemplo da elitização das federais é o simples fato de TODAS AS PÓS-GRADUAÇÕES STRICTU SENSU SEREM NA PARTE DA TARDE. Isso em si mesmo já visa excluir a classe trabalhadora (que tirando alguns casos onde a flexibilização é possível, ou o trabalho é de 6 horas) que não pode frequentar esses cursos, os reservando à MESMA ELITE que continua nas universidades federais. Claro que há vários casos de pessoas que estudam e conseguem fazer a pós-graduação, eu mesmo sou um exemplo desse caso, mas a meu ver, a falta de empenho por parte das universidades em se colocar cursos de pós-graduação a tarde é mais um ponto que comprova o quanto a universidade brasileira continua extremamente elitista e excludente. 

Se o sujeito trabalhador quiser fazer o seu mestrado ou doutorado ele precisa se virar e, ou abrir mão do seu emprego e tentar viver com bolsas das agências de fomento, (o que para a maioria dos trabalhadores não é interessante, pois recebem mais do que ganharia com a bolsa, sem contar que a bolsa, por não ter vínculo empregatício, o tira do mercado de trabalho por 2 ou 4 anos sem nenhuma garantia que ele conseguirá se recolocar no mercado de trabalho depois de terminado a sua pós-graduação) ou então trabalhar apenas em meio período ou com jornada reduzida. (o que claramente é um número muito pequeno de trabalhadores, basicamente funcionários públicos). É óbvio que nem todos os trabalhadores têm interesse em fazer mestrados e doutorados, mas os que têm padecem com as condições dadas nas universidades públicas.

A forma como a universidade federal caminha no Brasil, a meu ver faz com que se mantenha a diferença estrutural vinculada à renda no Brasil. A meu ver corre-se o risco de sob o discurso de "universidade pública gratuita" esconder um discurso que visa manter no poder a mesma classe dominante que sempre esteve lá. É óbvio que o assunto é um assunto complicado, com várias atenuantes, mas é algo que mesmo com todos os espinhos precisa ser pensado seriamente no Brasil.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Sobre conversas, redes sociais e aplicativos.





Uma coisa bem interessante que reparo hoje em dia em tempos de tanta pertença às redes sociais é que a própria noção de conversa se alterou bastante. Se antigamente a conversa exigia um dispêndio de si em relação a um outro, exigia às vezes uma espécie de "preparo" pois era preciso marcar de encontrar em algum lugar para conversar, ou até mesmo uma "etiqueta", pois eu sempre aprendi que só se deve ligar para as pessoas após 10 horas da manhã e no mais tardar às 22:00, se passasse desse horário já seria incômodo, hoje em dia nada disso faz sentido.

A era das redes sociais, Whatsapp, Viber, Telegram, etc. acaba por transformar o tipo de conversa "old school" em uma espécie de "evento" que acontece raramente. Praticamente tudo o que se precisa resolver ou conversar pode ser feito mediante o uso das redes sociais e aplicativos. Marca-se coisas, discute-se problemas familiares, psicológicos, amorosos e praticamente qualquer outro assunto sem precisar abrir mão do que se está fazendo. Ao mesmo tempo em se que manda mensagem para um, olha-se o email, conversa-se com outro, liga-se o computador, etc. O momento da conversa se torna apenas uma dentre outras tantas atividades que precisam ser feitas urgentemente.

Obviamente que aqui não se trata de demonizar o uso das novas tecnologias. Com certeza elas trazem inúmeros avanços para nós, e com certeza ajuda-nos a resolver várias coisas que não teríamos como fazê-lo se não fossem por elas. Claro que aqui cabe também perguntarmos se tais novas demandas não são criadas exatamente pelas próprias redes sociais e aplicativos que nos colocam em um círculo vicioso do qual raramente conseguimos escapar em dias atuais. Mais ou menos parecida com a lógica do capital que cria necessidades para serem supridas por ele mesmo fazendo o sujeito entrar no mesmo círculo vicioso que aludimos acima o tornando um escravo em nome da suposta liberdade que apregoa.

O que quero ressaltar é que parece que estaríamos vivendo uma espécie de "novo paradigma conversacional", pois se antigamente a conversa era um encontro onde a presença do outro se mostrava de forma insubstituível, hoje tal presença se torna várias vezes desnecessária. Pode-se muito bem falar algo para um outro sem obter nenhum tipo de resposta, pode-se enviar um "HAHAHA" sendo que nem mesmo se leu, ouviu, achou graça naquilo que foi "compartilhado" pelo outro. Sem contar que nem mesmo é preciso "responder" o outro, pois posso simplesmente ignorá-lo e deixá-lo no vácuo sem que isso gere sobre mim nenhum tipo de culpa ou eu seja considerado sem educação.

Obviamente que as redes sociais e aplicativos de conversa online possibilitam que conversemos mais facilmente com as pessoas, propiciam um bom instrumento para passarmos tempo, divertirmos, ficarmos próximos de pessoas que não teríamos como ter contato assíduo se não fossem por essas ferramentas. Se por um lado tais ferramentas nos afastam do outro uma vez que podemos falar sem ser ouvidos/lidos entrando em uma relação fictícia com um suposto interlocutor, por outro lado elas permitem um contato mais assíduo e várias vezes servem como instrumento profícuo de diálogo resolvendo problemas como a distância, o tempo, etc. Não é o caso portanto nem de demonizar e nem de santificar as redes sociais e aplicativos de conversa, mas apontar para uma dimensão paradoxal que tais tecnologias nos colocam.

Um filme que gosto muito é o filme "Her" de Spike Jonze, onde o ator principal Joaquin Phoenix interpreta um sujeito que inicia um relacionamento afetivo com um novo sistema operacional lançado no mercado. Ele se apaixona pelo sistema operacional e o filme retrata esse relacionamento entre ambos. Próximo ao final do filme (SPOILER ALERT) Theodor (personagem interpretado pelo Joaquin Phoenix) pergunta à Samantha (Nome próprio que Theodor dá ao sistema operacional) com quantas outras pessoas ela estaria conversando e ela responde que seria por volta de umas 7 mil outras pessoas. Isso é uma ferida profunda no coração de Theodor que se achava como único para Samantha. Ao descobrir que enquanto ela conversava com ele ela falava com outros 7 mil usuários, Theodor percebe que vivia uma grande ilusão de ser único para o sistema operacional. (FIM DO SPOILER)

Para mim parece que várias vezes reproduzimos essa mesma dinâmica durante as nossas conversas nas redes sociais e aplicativos. Obviamente que no filme se trata de uma exacerbação para pensarmos até onde vai o nosso relacionamento com as novas tecnologias, mas a noção de que ao conversarmos nas redes sociais e aplicativos, várias vezes fazemos o mesmo que Samantha (respeitada a proporção numérica) parece ser algo inegável. Mas o que isso quer dizer? A meu ver isso quer dizer que no mundo contemporâneo a dimensão do outro pode facilmente ser esquecida em nome de uma suposta praticidade e "onipresença" do sujeito. Onde há onipresença não há presença do outro, mas apenas sufocamento do outro. Tal "onipresença" se evidencia no fato de querer estar em todos os lugares virtuais ao mesmo tempo, ou seja, nas redes sociais, nos aplicativos, no email, etc. se mostrando uma grande ilusão por ser impossível prescindir do outro na relação com o mundo.

Se as redes sociais e os aplicativos conseguem transformar o diálogo em monólogo é porque consegue fazer com que o sujeito se iluda pretendendo ser um "sozinho" curtido por vários. Se no modelo de conversa "old school" não se tinha como prescindir da dimensão do outro, pois o mesmo se encontra ali na sua frente e demanda uma resposta de sua parte que não pode simplesmente sair da conversa e ir para outro lugar (sem que o seu interlocutor ache isso muito estranho, é claro), nas conversas virtuais pode-se facilmente conversar sozinho no aguardo que o outro responda ou não. Não se tem garantia da resposta e nem mesmo garantia da presença do outro. Da mesma forma que posso ignorar conversas, posso ser ignorado pelo outro. Da mesma forma que posso me negar a responder, posso ser negado pelo outro também. No final parece que nessa nova dinâmica das redes sociais a relação eu-outro se torna extremamente fragilizada e não raras vezes se torna apenas fictícia.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Sobre a homoafetividade e a igreja evangélica (parte 1)







Algo que sempre achei curioso dentro da igreja evangélica é a forma como ela se posiciona de forma, várias vezes, muito simplista diante de temas extremamente complexos e como complexifica temas extremamente simples. Um exemplo de uma complexificação de um tema simples pode ser visto na forma como a igreja lida com os dízimos. Algo que foi instituído no Antigo Testamento visando o dom da partilha, como uma espécie de igualação dos meios de subsistência, como forma de dividir igualmente o produto da terra entre quem produz e não produz é transformado pela igreja evangélica em um imposto que facilmente condena todos os que não contribuem. Já falei bastante sobre o dízimo aqui

Um exemplo de um tema complexo que é tratado de forma extremamente simplista pela igreja evangélica é a questão homossexual. Dentro dela facilmente a questão se resolve colocando a ação como pecado e citando versículos bíblicos que condenam a prática homoafetiva. Qualquer pastor ou líder evangélico que vá falar sobre a questão já tem na ponta da língua os versículos da carta de Paulo aos Romanos capítulo 1, alguns textos de apocalipse, e alguns mais extremistas recorrem a algumas passagens do livro de Levíticos para mostrar o quanto a Bíblia se mostra contra tal prática, sendo, portanto, pecado praticá-las. A meu ver, o simples recurso a citação de versículos nunca se mostrou profícuo para justificar questões de comportamento, embora para alguns isso funcione muito bem. Obviamente que para isso funcionar é preciso que se parta de uma visão do texto bíblico que não compartilho, ou seja, a ideia de que a Bíblia é a palavra de Deus e que tudo que está escrito lá descreve a vontade atemporal de Deus. A minha posição em relação a Bíblia é outra. 

Para mim, o texto bíblico é um texto que deve ser compreendido tendo em vista a época de sua escrita, os seus diversos autores, as configurações culturais da época da escrita de determinado livro, etc. Da mesma forma que nossas concepções sobre o mundo muda com o passar do tempo, as concepções de mundo de um povo muda a partir da sua história. Se quisermos observar apenas um desses conceitos podemos observar o conceito de justiça que vai se alterando com o passar do tempo. De uma justiça retributiva a uma justiça mais graciosa. Da mesma forma, qualquer tema, para ser bem tratado à luz do texto bíblico, precisa ser inserido dentro do contexto de sua aparição para que não olhemos com lentes erradas algo que é claramente definido a partir de uma demanda social. 

Tendo dito isso, acredito que a questão da homoafetividade deve ser lida também da mesma forma, ou seja, ela deve ser entendida à luz do contexto em que os diversos textos foram escritos, o "por quem" foi escrito, com que propósito foi escrito, etc. Fica bem claro a partir do que falamos que uma análise atemporal de um determinado tema não funciona se quisermos realmente entender como lidar com a questão na contemporaneidade. Ao invés de simplesmente citarmos versículos, acho que seria muito mais prudente se pensarmos em que medida o que a Bíblia diz sobre a questão homoafetiva pode nos indicar não um caminho de julgamento, mas um caminho para o amor, pois como nos disse Jesus, "o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado" (Mc 2,27), ou seja, o homem é sempre mais importante que a lei. O acento recai sobre o homem e é exatamente sobre esse ponto que pretendo focar nessa pequena introdução ao debate, pois se colocarmos o acento sobre a lei corremos o sério risco de  perdemos a humanidade do homem, mas se colocarmos o acento sobre o homem daremos à lei um estatuto vivo para além de uma mera norma. 

É bem claro para qualquer leitor atento do texto bíblico que ele fala muito pouco sobre sexo, ou sobre as diversas possibilidades de relacionamento entre os sexos. O porquê o cristianismo desde o seu início fixou tanta a sua atenção sobre essa questão é algo interessante e se isso não está tão presente no texto bíblico é bem provável que essa fixação sobre o tema venha de fontes exteriores ao ambiente judaico. Sabemos que o cristianismo do primeiro século sofreu uma grande influência do platonismo e do gnosticismo e nessas filosofias percebemos um desprezo muito grande pelo corpo e uma predileção pela alma, ou seja, tudo que é corporal deve ser deixado de lado pois atrapalharia o desenvolvimento da alma. Esse tipo de dicotomia é bem assimilado pelos primeiros cristãos e se fixa muito cedo no cristianismo. 

O ser humano é um ser sexual. A sexualidade faz parte da natureza humana e isso nos comprova a medicina, a psicologia, e principalmente a psicanálise que traz a sexualidade para o centro do seu discurso propondo uma nova forma de se enxergar tal conceito. Freud nos propôs que a sexualidade é algo que vai muito além da relação sexual em si, e vai também muito além dos órgãos genitais masculinos e femininos. A partir de Freud começa-se a pensar a sexualidade de forma mais ampla, de forma que ele mesmo afirma que a sexualidade já se encontra na própria criança desde o seu nascimento. Quem tiver interesse sobre o tema recomendo a leitura dos "Três ensaios sobre a sexualidade" de 1905 onde tal ideia é desenvolvida. 

Freud trabalha com a noção de pulsão, que seria  o "processo dinâmico que consiste numa pressão ou força que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal; o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir suas metas (Laplanche e Pontalis,1995, P.394)  e o conceito de libido que  é definida por Freud como energia dessa pulsão. (Por se tratar de dois temas centrais da teoria psicanalítica que perpassa toda a sua história fica impossível dar uma definição mais pormenorizada desses conceitos. Quem tiver mais interesse sobre os dois conceitos recomendo a leitura do Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis)

Algo que a psicanálise vai nos mostrar é que a pulsão pode ser dirigida a qualquer objeto, inclusive ao próprio eu, e basicamente, o que determina o objeto a que a pulsão se destinará dependerá de diversos fatores. Segundo o próprio Freud, 

"O objeto de uma pulsão é a coisa pela qual ele atinge a sua finalidade. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que a pulsão sofre na sua vida, sendo que esse deslocamento da pulsão desempenha papéis altamente importantes "(Freud,1915, p. 143)

Dessa forma,  a pulsão pode encontrar diversos caminhos para se satisfazer, desde um objeto, uma outra pessoa, ou até mesmo o próprio eu, tendo sempre como objetivo descarregar e aliviar a pressão interna, e de alguma forma complementar aquilo que falta ao ser humano.  Essa falta, a psicanálise a trata como sendo algo estrutural, algo que nunca será satisfeita plenamente; é a falta provocada pela lei da palavra que humaniza o sujeito e faz nascer o desejo. Por isso que a pulsão nunca encontra o objeto que a satisfaz completamente e sempre está buscando novas formas de satisfazer. 

Mas para que essa digressão pelo campo da psicanálise? Para mostrar que a questão da sexualidade não é algo simples, e mostrar que a noção de sexualidade deve ser entendida para além da questão meramente sexual. Afirmar que a sexualidade é algo inerente ao ser humano é propor uma antropologia que parte do pressuposto de que o homem é um ser relacional, desvinculando o sexo do seu caráter meramente "reprodutor" ou normativo, integrando-o a uma dimensão mais holista. Através do conceito de pulsão rapidamente evidenciado aqui, podemos propor que, se o objeto da pulsão varia de acordo com o que acontece na vida, o que deve reger a sexualidade não é uma norma, mas a noção de complementariedade enquanto possibilidade de satisfação do desejo. 

Dessa forma, definimos nossos pressupostos de forma mais clara.
Nosso primeiro pressuposto é que o texto bíblico deve ser lido contextualmente e não como uma verdade atemporal.
Nosso segundo pressuposto é de que o ser humano é um ser sexual, mas essa sexualidade remete a uma noção de complementariedade, ou seja, a pulsão visa satisfazer o desejo através de objetos que podem ser desde um objeto qualquer, ou uma outra pessoa, ou o próprio eu.  No entanto, tal satisfação da pulsão é sempre parcial, pois o objeto capaz de preencher a falta está para sempre perdido e não pode mais ser encontrado. 

A partir desses pressupostos o diálogo entre fé cristã afirmada pela igreja evangélica e a homoafetividade pode se dar de uma forma mais profícua para além dos simplismos que ouvimos sempre que esse tema é tratado em uma igreja evangélica.  

Ao invés do simplismo, pensemos a partir da simplicidade da cruz. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Um pouco sobre o pecado





Algo bem interessante que reparei nessas eleições nas redes sociais, principalmente no Facebook, (pois várias pessoas desconhecem a maravilha que é o Twitter) é que a maioria dos evangélicos da minha timeline estão se propondo a votar no candidato do PSDB apontando como motivo principal uma espécie de "conserto para o Brasil". Com a hashtag  #ForaPT querem afirmar inúmeras coisas e não raras vezes os vários escândalos de corrupção envolvendo o PT durante esses últimos 12 anos de governo. Algo curioso é que muito facilmente são esquecidos os inúmeros escândalos envolvendo o PSDB, tanto em Minas Gerais durante o governo do presidenciável Aécio Neves, quanto durante o governo tucano no Brasil. Exemplos como a compra de votos para a reeleição, a já tão falada "pasta rosa, o aeroporto na fazenda do tio, o mensalão mineiro, etc. etc. etc. ad nauseaum.

Há algum tempo atrás deixei bem claro em um post também no Facebook a minha opção por votar em Dilma nessas eleições por tudo o que o governo do PT tem feito pelo Brasil nos últimos 12 anos, que é sem dúvida inegável. O combate à fome que tirou o Brasil pela primeira vez do ranking mundial dos países onde esse problema é muito grave, os diversos programas sociais que o PT vem consolidando ao longo do seu governo tais como o Bolsa família, os investimentos na área da educação que permitiu a criação de várias universidades federais, criação e consolidação do Pronatec em todo Brasil, etc. Todas estas ações estão aí escancaradas para qualquer um que queira ver, e para mim estes são programas que devem ser mantidos e aprimorados, coisa que acredito, será algo que a Dilma continuará fazendo se reeleita.

A meu ver, o apoio quase que maciço dos evangélicos da minha timeline à candidatura de Aécio Neves demonstra algo bastante sintomático que é a adesão deles a um discurso mais conservador. Com certeza a maioria dessas pessoas são contra o aborto, são contra a legalização das drogas, são contra a causa homossexual, etc. Ou seja, assumem um discurso extremamente conservador e ainda colocam o texto bíblico como aliado para justificar suas posições, caracterizando como "pecado" todos esses exemplos que acabei de citar. Esse conservadorismo e essa "tara" pela classificação do que é ou não pecado, a meu ver contribui bastante para a adesão a um tipo de discurso que quer se afirmar como possível "moralizador da nação". Ou seja, a dinâmica se dá de uma forma muito simples. "O atual governo, além de corrupto ainda quer corromper os nossos valores, logo incentivam o pecado." Dessa forma tem-se obrigatoriamente que se colocar contra tal dinâmica, e o fará votando no candidato que demonstra não admitir todos esses progressismos que vão "contra a lei de Deus".

A meu ver, nessa tentativa de polarizar o mundo entre o certo e errado, há um desejo bastante infantil, talvez até de cunho narcísico, de querer que o mundo seja da forma como eu o idealizo. Ao polarizar as coisas entre certo e errado, opressor e oprimido de forma tão rápida e com uma certeza tão firme, pretende-se com isso organizar o mundo de forma a afirmar exatamente qual o meu lugar e qual o lugar do outro. Essa mesma dinâmica, a meu ver, justifica a "tara evangélica" para definir "o que é pecado" a qualquer custo.

João, que gostava muito de definições sucintas, nos dá uma rápida definição de pecado como "transgressão da lei" (I Jo 3,4). Sem dizer muito sobre o que está entendendo por lei, já prontamente procura tirar do seu interlocutor a ideia de que a coisa seja tão simples como parece. Logo em seguida no texto, ele vincula a noção de transgressão da lei a uma prática por parte do sujeito, ou seja, aquele que pratica o pecado está em transgressão da lei, ou seja, o pecado se relaciona sempre a uma prática do pecado. Não existe pecado se não há alguém que pratique o pecado, ou falando de forma mais clara, não há pecado se não há pecador. Dessa forma, é o sujeito da ação que se torna o mais importante, pois é na sua relação com a lei que se determinará se há ou não pecado. A lei por si só não é capaz de dizer o que é ou não pecado, mas apenas a transgressão da lei por parte do sujeito.

A relação do sujeito com a lei é sempre uma relação singular, isso já nos ensina a psicanálise desde Freud. O sujeito apenas se torna sujeito a partir do momento que a lei da palavra entra em seu corpo e ele é jogado na comunidade dos falantes. A lei que interdita o sujeito é a mesma que o humaniza, pois sem lei é impossível haver desejo. Dessa forma, a transgressão da lei aparece sempre de forma individualizada, sempre marcada por uma relação extremamente subjetiva entre o sujeito e a lei.

Se o pecado é transgressão da lei, ele é sempre singular, e se trata sempre de uma resposta que o sujeito dá em relação à lei. Daí que podemos afirmar que o pecado se assemelha nesse aspecto ao Reino de Deus. Da mesma forma que não podemos dizer sobre o Reino de Deus "ei-lo aqui, ou ei-lo ali, pois está dentro de nós (Lc 17,21) também não podemos dizer do pecado "ei-lo aqui, ou ei-lo ali" pois depende da relação singular do sujeito em relação à lei. Por isso que a meu ver toda tentativa de classificar o que é ou não pecado se torna uma tentativa vã, pois há nessa tentativa apenas um interesse narcísico de que o mundo seja de acordo com os meus valores.

Sabemos que a palavra nos é transmitida sempre por um Outro que nos insere no campo da cultura nos humanizando e nos fazendo entrar em contato com uma dimensão para além do nosso aspecto animal. A forma como entro no mundo da cultura é determinado pela própria cultura onde vivo, e a forma como isso me será passado será completamente condicionado pelo meio em que serei ensinado. A própria noção de pecado como transgressão da lei será dada sempre culturalmente. Isso é facilmente visível se compararmos as diversas culturas que nos cercam. O que seria considerado "pecado" em uma determinada cultura não é considerado "pecado" em outra. E isso apenas garante que a relação do homem com a lei, mesmo sendo sempre singular, é sempre mediada pela palavra do Outro.

Assumir o pecado como uma entidade válida para qualquer cultura é não querer enxergar o relação singular do sujeito com a lei, é querer uniformizar o mundo de forma a conseguir polarizar muito claramente o certo e o errado, tarefa hoje fadada ao fracasso. Mas isso nos levaria a um completo relativismo? A meu ver tal proposta não nos leva a um relativismo, pelo menos não obrigatoriamente. O relativismo entendido como "tudo é relativo" já se mostrou uma grande falácia e, a meu ver, nesse pretenso relativismo não se encontra uma matriz libertadora, mas muito pelo contrário, uma matriz opressora que visa igualar os diferentes pontos de vista sob um só. O que isso gera não é o respeito pelo diferente, mas a absorção do diferente dentro do mesmo, e aqui claramente se perde a dimensão do Outro.

Dessa forma, ao assumirmos o pecado como uma relação sempre singular do sujeito em relação à lei, de forma a não sermos capazes de dizer ao certo o que é ou não pecado, não estamos propondo um relativismo, mas exatamente o seu inverso. É por ser uma relação singular do sujeito para com a lei que todo sujeito se torna extremamente responsável pela resposta que dá a ela. Aqui que entra o papel do Outro como o grande limitador da ação humana. Se a lei é sempre me dada por um Outro que me coloca no mundo da linguagem e me humaniza esse Outro aparece como a quem endereço sempre uma resposta. Esse Outro aparecerá para mim como aquele que encarna a lei e exige que eu o responda. Por isso que a lei é sempre a lei do Outro.

O pecado, portanto, é sempre em relação a um Outro e nunca em relação a mim mesmo. Se fosse em relação a mim, seria uma relação meramente imaginária, onde o Outro não entra na equação, mas como se dirige ao Outro, sou capaz de responder e me colocar de forma singular em relação à lei me tornando extremamente responsável pela minha resposta a esse Outro.

Talvez esteja aí algo que Agostinho já nos dizia no seu comentário ao evangelho e à primeira epístola de São João. "Aquele que cumpre a lei não está sob a lei, mas com a lei. Aquele que ao invés é sob a lei não está aliviado pela lei, mas opresso por ela." (2004 p. 47)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Entrevista sobre Rubem Alves

Recentemente fui convidado para dar uma entrevista ao Sinpro Minas (Sindicato dos professores de Minas Gerais) sobre a obra de Rubem Alves.

Para quem não sabe, a obra de Rubem Alves foi o objeto da minha dissertação de mestrado defendida em 2011 pela FAJE (Faculdade Jesuíta). Na época trabalhei o conceito de religião como linguagem da esperança no pensamento do Rubem Alves.

Para mim foi um enorme prazer falar sobre  esse pensador mineiro que muito me influenciou na forma de ver o mundo, a religião, Deus, etc.

O tema da entrevista foi o pensamento de Rubem Alves sobre a educação. Segue o vídeo para quem tiver interesse em assistir.



sábado, 20 de setembro de 2014

Considerações sobre Lamentações 5,15-16 - A lamentação e a possibilidade da dança.



Dos nossos corações fugiu a alegria; nossas danças se transformaram em lamentos.
A coroa caiu da nossa cabeça. Lamentações 5:15-16

O contexto do livro de Lamentações é bem conhecido dos leitores do texto bíblico.  O reino do norte (Israel) tinha sido levado cativo pela Assíria em 722 a.C, e em 587 a.C é a vez do reino do Sul (Judá) ser levado cativo por Nabucodonosor. O texto de Lamentações, escrito pelo profeta Jeremias, tem como contexto o exílio babilônico e se constitui um grande lamento pelo que o povo de Israel está passando.

O momento com certeza é muito difícil, e nessas horas parece que toda a esperança, até mesmo do profeta, se foi e não existe mais nada ou alguém em que se possa apoiar. O profeta coloca isso de forma muito crua nos versículos que abem esse texto.

Várias vezes a nossa situação é homóloga ao do texto de Lamentações. Do nosso coração fugiu a alegria, as danças se transformaram em lamentos e a coroa caiu da nossa cabeça. Os dias são difíceis, a sensação da abandono parece nos assolar e não vemos nenhuma saída no horizonte. No caso de Jeremias que morreu no cativeiro, essa foi uma realidade que se impôs de forma definitiva. Ou seja, não houve salvação, não houve "retribuição pelas boas práticas", nada além da morte no cativeiro. No entanto, mesmo com um cenário desolador como esse, Jeremias ainda propõe que possamos "trazer à memória o que nos dá esperança." (Lm 3,21) Ou seja, mesmo que a situação de fato não mude, a minha atitude para com aquele momento fará com que pelo menos ele mude para mim. A fé de Jeremias o leva a afirmar "Ó cidade de Sião, o seu castigo terminará; o Senhor não prolongará o seu exílio." (Lm 4,22) Mesmo que para ele essa verdade nunca tenha se concretizado, a sua fé o fazia afirmar tal possibilidade.

Aqui que vejo como que a dimensão da fé (independente da forma como ela se manifeste) se coloca de forma fulcral na relação do indivíduo com o mundo. A fé pode ser um grande instrumento para uma leitura mais positiva do mundo. Não falo de uma fé inerte, que apenas contempla as coisas, mas de uma fé que faz com que o sujeito se posicione diante da realidade e proponha a mudar tal realidade. Jeremias encarna esse ideal no livro de Lamentações. Mesmo não tendo poder para mudar a situação do cativeiro, ele insiste em apregoar aquilo que ele acredita ser o caminho para a mudança da situação. Aqui a dimensão existencial da fé se mostra de forma muito forte. A afirmação é sempre permeada por uma dúvida do profeta em relação a ela, o último versículo de Lamentações nos indica essa dimensão. Jeremias termina suas lamentações clamando: "restaura-nos para ti, Senhor, para que voltemos; renova os nossos dias como os de antigamente, a não ser que já nos tenha rejeitado completamente, e a tua ira contra nós não tenha limite!" (Lm 5,21-22) Mesmo que haja a possibilidade dessa ira de Deus não ter limite, ainda assim Jeremias está disposto a confiar. Novamente apontando para uma dimensão da fé que sempre coloca a dúvida em seu centro, mas que não nos impede de clamar. Muito pelo contrário, é pelo fato de haver dúvida é que somos capazes de nos lançar confiando que algo ou alguém nos segurará pelos braços.

A insistência na oração a Deus, a tentativa de explicação do porquê o povo ter sido levado ao cativeiro, a escrita dos lamentos, isso tudo nos mostra um profeta que não está simplesmente parado esperando que Deus aja de alguma forma, mas que está se empenhando em tentar compreender a sua situação e, na medida do possível, mudá-la. Jeremias ora, mas também escreve e lamenta junto ao povo. Ele ora, mas tenta explicar, tenta entender o porquê de sua situação. A chave que encontra para isso é a doutrina da retribuição tão presente no imaginário israelita de sua época. Para Jeremias o povo foi levado ao cativeiro por causa do "pecado dos seus profetas e as maldades dos seus sacerdotes." (Lm 4,13) Embora isso não mude a realidade, dá ao profeta uma chave de compreensão da situação. Por entender a sua situação dessa forma o profeta é capaz de orar pedindo a Deus que os ajude, é capaz de se voltar ao povo e pedir que se arrependam para que Deus faça a sua parte. Se o pecado nos trouxe até aqui, convertamos para que Deus mude a nossa sorte. Essa é a tônica de algumas das lamentações de Jeremias. A solução de Jeremias pode parecer pouco eficaz, mas ela traz consigo um sopro de esperança para o povo e para o próprio profeta.

Esse Deus que pode ou não atender as minhas orações, que pode ou não estar ali de fato, que pode ter "nos rejeitado completamente", que sempre se constitui como um grande vazio para além de nós mesmos, é para nós motivo de esperança. É para nós uma possível chave de leitura para tentar compreender a nossa situação. Talvez por isso as nossas visões sobre Deus sejam sempre tão precárias; Desde o Deus mais infantilizado -  tal como aquele que sabe todas as coisas, resolve todos os meus problemas, que aparece como pai que sabe de tudo etc, -  até um Deus visto como apenas um sentido possível para a existência, - uma representação de um pai "fraco", mas que ama e isso garante um sentido,-  nossa visão sobre Deus  parece querer dar conta apenas desse vazio que nos circunda e nos habita sem nunca conseguir realizar tal tarefa.

O nosso cenário às vezes parece tão desolador quanto o cenário vivido por Jeremias; no entanto o profeta nos mostra uma possível ação diante do caos que é o de dizer da esperança que habita em nós, que é o de agir a partir do que acreditamos para propor um caminho para mudar a situação presente, que é o de não se contentar com o presente assolador, mas estar disposto a construir um futuro melhor e lutar pela libertação do povo. Mesmo que tal tarefa nunca se veja concretizada ela se mostra como fonte de ânimo e alimenta a busca por um mundo onde a alegria não fuja mais de nós, e os lamentos se transformem em dança.

domingo, 14 de setembro de 2014

Pequena reflexão para um domingo. (Amós 6,6)





"Vocês bebem vinho em grandes taças e se ungem com os mais finos óleos, mas não se entristecem com a ruína de José". Amós 6:6

Recentemente estava lendo o livro de Amós e o versículo acima me chamou bastante atenção. Curiosamente o texto bíblico é em grande parte um texto para a coletividade. Raramente vemos instruções de cunho mais pessoal sendo dadas principalmente no Antigo Testamento. Obviamente que há instruções pessoais, Deus falando com Gideão, Moisés, Samuel, etc, mas até mesmo nesses exemplos a questão da coletividade é que "inspira" a voz de Deus.

Deus fala com Gideão sobre o livramento do povo, o mesmo com Moisés e Samuel. Parece haver sempre um apelo ao comunitário no texto bíblico. Se no Antigo Testamento esse apelo tem em vista apenas o povo de Israel, com o Novo Testamento esse apelo alcança todo o mundo nas cartas de Paulo e João. O princípio da coletividade se mostra como um grande norteador da proposta bíblica.

O versículo de Amós também nos mostra essa mesma dimensão coletiva que várias vezes é tão aclamada pelos cristão, mas muito pouco praticada. Obviamente que é muito mais fácil chorar com os que choram do que se alegrar com os que se alegram, no entanto se mostra muito mais complicado chorar com o outro enquanto tenho motivos e planos para me alegrar. Esse abrir mão da minha alegria em prol da tristeza do outro parece ser o movimento mais complicado de ser feito e é exatamente a isso que o texto de Amós parece se referir.

Não há uma condenação da alegria no texto de Amós, mas há uma advertência de que não se entristecer com a ruína de José é algo que não está certo. Se José está em ruínas, o vinho e os óleos finos se tornam secundários.
O que o texto de Amós nos convida a fazer é estarmos dispostos a descentrarmos de nós mesmos em prol do sofrimento do outro. Para o profeta parece fazer muito pouco sentido essa "alegria" dos vinhos e óleos finos enquanto uma parte do povo sofre. Isso às vezes acontece muito próximo a nós que não nos damos conta dessa espécie de compromisso exigido pelo profeta.

Estar disposto a abrir mão da minha alegria porque o outro está sofrendo parece ser o movimento proposto pelo profeta e que novamente tem a coletividade como alvo em detrimento do caráter  individual. Tal proposta de Amós vai de encontro à nossa contemporaneidade tão centrada no individualismo e no "cada um por si". Ser capaz de chorar com o que chora mesmo quando se tem tudo para estar bem demonstra talvez um entendimento mais maduro da proposta bíblica e ao mesmo tempo nos faz perceber que a tônica dos profetas do Antigo Testamento está em uma interessante consonância com a proposta de amor trazida por Jesus no Novo Testamento.


terça-feira, 2 de setembro de 2014

Um aguardo esperançoso...




Aguardo os dias em que as trevas não sejam mais tão presentes
Aguardo os dias em que as nuvens pesadas e carregadas não estejam sobre a minha cabeça insistindo em não chover para passar, mas permanecendo como sombra que impede toda luz de brilhar.
Aguardo os dias em que os momentos felizes sejam mais abundantes juntos que separados
Aguardo os dias em que eu não precise fingir estar bem para suportar mais um dia trágico em uma vida cada vez mais sem sentido.
Aguardo os dias em que a brisa seja leve, os dias sejam frescos, o sol ilumine a terra fazendo com que seja agradável.
Aguardo os dias em que a gravidade não seja tão forte de forma a puxar tudo de forma indestrutível para baixo fazendo parecer que cada parte do meu corpo pesa muito mais que bolas de chumbo
Aguardo os dias em que o silêncio não seja sinônimo de incômodo, mas sinônimo de cumplicidade
Aguardo os dias em que na casa onde havia felicidade, riso e alegria, não seja habitada pela tristeza, angústia e pesar.
Aguardo os dias em que realmente os dois voltarão a ser um, onde realmente possamos falar que andam juntos em prol de um objetivo.
Aguardo os dias em que os diálogos não resultem sempre em problemas, mas que possam ser trocas interessantes de ideias.
Aguardo os dias em que as palavras não sejam ditas com o intuito de ferir, machucar, mas como refrigério para alma, como conforto.
Aguardo os dias em que a paz esteja mais presente
Aguardo os dias em que não precise aguardar tudo isso.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Místico sikh sobre Deus. Confluências...






As pessoas vão ao seus templos
Para saudar-Me;
Quão simples e ignorantes são meus filhos
Quando pensam que vivo isolado.

Por que não vêm e Me saúdam
Na procissão da vida, onde sempre vivo,
Nas fazendas, nas fábricas, no mercado?
Lá onde insuflo de ânimo aqueles
Que ganham seu pão com o suor de seu rosto?

Por que não vêm e Me saúdam
Nos barracos dos pobres,
E Me encontram a abençoar os pobres e necessitados,
Secando as lágrimas de viúvas e órfãos?

Por que não vêm e Me saúdam
Ao lado da estrada,
E Me encontram a abençoar o mendigo que pede por pão?

Por que não vêm e Me saúdam
Entre aqueles que são pisoteados
Pelos orgulhosos no roubo e no poder?
Por que não Me vêem contemplando seu sofrimento
e despejando compaixão?

Por que não vê e Me saúdam
Entre as mulheres que se afundaram no pecado e na vergonha,
Lá onde me sento junto delas para abençoar e elevar?

Estou seguro
Que jamais sentirão falta de Mim
Se tentarem Me encontrar
No suor e na luta da vida
E  nas lágrimas e tragédia dos pobres.

(Kushdeva Singh. Místico e ativista sikh. In Dedication 1974, p.31-32)

terça-feira, 19 de agosto de 2014

A fé vem pelo ouvir (Rm 10,17) - Um Diálogo entre fé e psicanálise




"A fé vem pelo ouvir" (Rm 10,17), essa é talvez a única vez que a Bíblia fala sobre o surgimento da fé. Ou seja, a fé, como nos diz Paulo se inicia com uma palavra.

Sabemos que a psicanálise nos propõe que também nós enquanto sujeitos só surgimos com a palavra. Antes dela somos apenas um corpo pulsante que não distingue entre o que sou eu e o que é o outro. Essa relação é tipificada na relação entre a mãe e o bebê onde este se sente um com a mãe, em uma relação que Freud chamava de "fusional".  Somente quando a palavra entra nesse corpo é que é possível o nascimento do sujeito. Tornar sujeito significa estar submetido a uma separação, significa ser lançado no mundo, significa se colocar diante da realidade de forma que a antiga relacão fusional se mostre para sempre perdida. Essa palavra será a responsável pela nossa separação. É nesse sentido que a instância paterna aparece como a promovedora desse corte narcísico que põe fim ao desejo de onipotência da criança de ser o único objeto de amor para a mãe.

Essa palavra que entra em nós é sempre condicionada pelo mundo desse Outro que nos diz essa palavra. Nossos pais nos ensinam a partir da experiência deles o que é o mundo, como ele se organiza, etc. Essa palavra que nos é dita nos orientará por toda a nossa vida e nos fará entrar no mundo da cultura. Tal palavra mesma é dita dentro de uma determinada cultura. Nossos pais nos ensinam o que aprenderam de seus próprios pais e a partir daí os ensinamentos vão sendo passados de geração a geração criando um mundo para cada novo indivíduo que nasce.

Nossa fé também é ensinada culturalmente, ou seja, a nossa entrada no mundo religioso será sempre marcada pela nossa cultura, e por isso mesmo será sempre advinda de uma palavra. Nesse sentido que podemos concordar com Paulo quando diz que a fé vem pelo ouvir. Podemos também lembrar que Maria engravida pela palavra, ou seja, ela se abre para ouvir o que Deus lhe propõe e a partir daí assume tomar posição diante da palavra ouvida e encarar a missão que lhe foi proposta.

A fé que vem pelo ouvir, se coloca então como promovedora de um lançar-se no mundo, nos fazendo como seres separados, que encaram a realidade em que vivemos sem a nostalgia de um retorno a um mundo onde tudo era seguro e certo. A experiência da fé insiste em nos fazer ver a realidade, mas ao mesmo tempo nos permite ver que não se está sozinho para vivenciá-la. Dessa forma que a fé nunca se caracteriza como certeza, mas sempre como dúvida.

A fé, como nos diz Morano, sempre no coloca em relação a duas palavras. A palavra da instância paterna que nos faz sujeitos, que nos vem da cultura, que nos coloca como seres marcados pela falta, diante de um desamparo estrutural,  e a Palavra, essa com "p" maiúsculo, pois vem de fora, vem de um Outro que permanece para sempre escondido, sendo "visto" apenas pelas costas (Ex 33,23). A grande tensão que se estabelece é de não tentar tomar essa Palavra que vem de Deus como resposta à carência que vem da palavra da instância paterna. Essa Palavra de Deus não visa tampar o buraco da falta, não visa resolver o drama do nosso desamparo estrutural que nos assola enquanto humanos, não visa ser uma resposta ao desamparo, mas visa abrir para nós uma outra dimensão da existência que aceita a contingência, mas nos dá motivos para a esperança de um sentido para a vida.

O desejo infantil de encontrar um objeto que tampe o buraco da falta facilmente cai na tentação de ver em Deus esse objeto e quando isso acontece a religião se torna uma grande ilusão tal como nos disse Freud em obras tais como O futuro de uma ilusão e Mal-estar da civilização. No entanto sempre é possível uma relação positiva com a religião e com a fé. A partir do momento que compreendemos que Deus não deve ser visto apenas como uma "muleta psicológica" (para usar a expressão de Bonhoeffer), nem deve ficar preso nas fixações infantis de um pai imaginário que detém todo o poder seremos capazes de pensar a nossa relação com Deus de uma forma mais madura.

Obviamente que as representações de Deus como pai ou mãe funcionam de forma a nos permitir vivenciar a nossa experiência com Ele/Ela de uma forma mais pessoal, no entanto é preciso ter em mente que tais representações nunca serão capazes de dizer o que de fato Deus é, nem mesmo devem tais representações tomar o estatuto de "verdade", mas devem permanecer sempre abertas para que não se caia novamente na tentação infantil de suprimir a falta que é estrutural.

O Deus da necessidade deve se transformar no Deus do desejo, ou seja, do Deus necessário como sustento para compreender a própria existência ao Deus que surge da aceitação da própria carência. Esse movimento pode ser visto na pessoa de Jesus que mesmo diante do desamparo de Deus, diante de um dos momentos mais tenebrosos de sua vida

é capaz de se entregar manifestando assim como revelação de Deus que se revela como amor, como fraco e não como Deus onipotente desejado pela criança.

A fé que vem pelo ouvir nos chama a uma fé madura, uma fé que não nega a contingência nem a finitude da vida, uma fé que não tem em Deus apenas uma busca por uma segurança ou perdão,  mas uma fé que  é capaz de se relacionar com Deus a partir do desejo, a partir da falta, mas sempre entendendo que esse Deus não será capaz nunca de suprimir a falta que é sempre estrutural.

Como nos afirma Morano, "talvez seja absolutamente necessária a morte de nossas expectativas sobre Deus, como condição de possibilidade para nos encontrarmos autenticamente com Ele." (MORANO, Carlos Dominguez. Experiencia cristiana y psicoanalisis. 2006)






segunda-feira, 28 de julho de 2014

Pensamentos esparsos sobre a desinstitucionalização no meio evangélico




Uma das coisas que acho interessante ao pensar o movimento de desinstitucionalização no meio evangélico é o quanto que isso talvez reflete a nossa situação hipermoderna de perda dos referenciais, ou então para utilizar a expressão de Lyotard, a época da "perda dos metarelatos".

Obviamente que há uma distância grande entre a religião e a sua institucionalização. Enquanto a religião fala do sentido da vida, a busca pelo mistério, etc, a institucionalização acaba por cristalizar visões de mundo e não raras vezes sucumbe a fundamentalismos e dogmatismos que acabam por tirar da religião todo o seu brilho a tornando extremamente burocrática e sem vida.

Devemos ter em mente que o processo de institucionalização da religião, pelo menos no ocidente, vem desde o início do cristianismo e, portanto, é algo que faz parte da história da igreja cristã desde a sua formação.

Algo que nos aponta Louis Dumont em seu livro sobre o individualismo é que a própria noção de individualismo no ocidente se inicia com o início do cristianismo. O cristianismo seria a princípio uma religião onde a relação do sujeito com Deus se daria de forma individual enquanto "sujeito-fora-do-mundo-e-em-relação-com-Deus". Esse sujeito que se relaciona assim com Deus, depende apenas dele mesmo para se aproximar da divindade. Embora participante de uma comunidade, a sua relação com Deus se daria sempre de forma individual e poderia no máximo ser "partilhada" na comunidade. Esse tipo de relação do homem com Deus, para Dumont, acaba por marcar o caminho que tomará o cristianismo até a sua transformação em religião oficial pelo império romano. A partir daí o "sujeito-fora-do-mundo" é chamado a se tornar "sujeito-no-mundo", pois o cristianismo seria agora um fator político importante para o império e por isso os cristãos não poderiam mais se abster do mundo em prol do "além-mundo".

Essa mudança de foco para Dumont acaba por fazer com que o cristianismo crie força política e seja utilizado já desde a idade média como uma religião que tem como fim último o "mudar o mundo".
A institucionalização do cristianismo por meio da igreja católica acaba por ser um fator decisivo na associação entre religião e estado e a partir daí toda uma série de mudanças se segue sem muitos mistérios para os que conhecem um pouco de história.

Diante de uma época onde tudo se torna objeto de escolha por parte do sujeito, a questão religiosa cada vez se liga mais a uma dimensão emocional do que propriamente a uma adesão a um discurso sobre o mundo. O fiel hipermoderno acaba por visar mais uma "religião a la carte" do que propriamente se comprometer com os compromissos que determinada religião exige. Tal dinâmica é vista de forma muito clara nos diversos sincretismos muito comuns nas igrejas evangélicas neo-pentecostais. Práticas como "passar no vale do sal", "ungir a água que será tomada" revelam uma espécie de apropriação de diversas culturas religiosas em nome de uma possível "luta contra o mal".

A partir do momento que a religião se torna um objeto de escolha por parte do sujeito, o qual não está mais submetido à "religião dos pais", a própria vinculação desse sujeito com a instituição se verá abalada. A instituição acaba se tornando um lugar a ser abandonado, pois não diz mais respeito a um discurso maior, mas se fecha cada vez mais sobre si tornando-se um fim em si mesma.

O sujeito hipermoderno acaba se encontrando diante de um grande dilema. Se por um lado ele visa a sua liberdade praticamente irrestrita de escolher o que bem entender, escolher a sua forma de religião, aquela que mais lhe agrada, aceitar essa posição teológica e não aquela, por outro lado ele sente a necessidade de uma pertença a um determinado grupo que pensa igual a si mesmo e devido às inúmeras leituras e releituras teológicas possíveis o que se vê é uma tremenda incompatibilidade entre as diversas posições teológicas que por serem extremamente particulares encontram pouquíssimos pontos em comum para que sejam compartilhadas por um grupo maior.

Esse dilema atravessa o religioso hipermoderno de forma crucial. Por um lado o desejo da escolha, por outro a necessidade de pertença. Por um lado a liberdade de pensar a sua própria fé a partir de uma teologia própria, por outro a necessidade de inclusão dentro de um discurso que garanta uma espécie de sentido à sua prática de fé.

Os constantes discursos que vemos atualmente incitando a desinstitucionalização, propagando uma "fé mais autêntica", uma fé que deve ser vivida apenas na relação homem-Deus, a meu ver, acaba por evidenciar esse grande paradoxo hipermoderno. Por trás de frases do tipo "cansei de ser evangélico", o que se pode notar é uma espécie de discurso que visa afirmar uma fé própria, sem nenhum tipo de "pertença", sem necessidade de vinculação a nenhuma leitura consagrada do texto bíblico.

Na negação da tradição se vê a mesma dinâmica hipermoderna que sempre se quer livre sem precisar vincular-se a nada. No entanto, essa dinâmica também tem sua contramão. Da mesma forma que o discurso libertário contra toda forma de tradição é incitado diversas vezes, o movimento de uma "pertença irrestrita" também ganha força. Não raramente vemos nos carros frases do tipo "orgulho de ser católico", "Sou membro da igreja X" que evidenciam esse movimento contrário que a nosso ver se tornam duas faces da mesma moeda. Ao negar a tradição em nome da liberdade irrestrita o sujeito acaba procurando algum porto onde se ancorar e nesse momento os movimentos de cunho mais fundamentalistas acabam por ganhar força.

A noção de uma "religião a la carte" promove ao mesmo tempo o discurso de uma desinstitucionalização onde o sujeito se mostra "cool" em relação à sua fé, mas ao mesmo tempo faz surgir movimentos contrários de fundamentalismos que aparecem quase que como resposta diante da crescente falta de um discurso norteador.

A meu ver o processo de desinstitucionalização no meio evangélico se insere completamente dentro da dinâmica hipermoderna. Como ainda estamos vivendo tal movimento, que a cada dia se torna mais forte, ainda é muito cedo para dizer se tal desinstitucionalização será boa ou ruim para o movimento evangélico, no entanto penso que algo que se torna inegável é que as instituições evangélicas a cada dia que passam perdem a sua credibilidade ao se envolverem em escândalos, práticas desonestas, etc. Infelizmente a maioria das pessoas fazem uma relação direta entre a religião e a sua forma institucionalizada, o que torna o debate várias vezes impossível. Não penso que o caminho seja uma completa desinstitucionalização da igreja pois querendo ou não a instituição acaba por proporcionar um ambiente várias vezes acolhedor e um espaço de convivência benéfico aos membros, no entanto, ao continuar trilhando o caminho trilhado nesses últimos anos, talvez as instituições evangélicas estejam cavando a sua própria cova de forma que talvez diremos como Nietzsche que afirmava lá no século XIX que os templos eram apenas os túmulos de Deus.